Folha de S.Paulo

ANÁLISE Sentidos são esculpidos diretament­e em cada faixa gravada

- SIDNEY MOLINA

FOLHA

“Esses aparatos técnicos agregam à canção qualidades que não podem ser capturadas na partitura vocal. Em certo sentido, os Beatles não estavam mais escrevendo canções.”

A frase —referência explícita ao álbum “Sgt. Pepper’s Lonely Hearts Club Band”— está no quinto volume da “História da Música Ocidental” do musicólogo Richard Taruskin (Oxford, 2010, sem tradução em português).

Falar da música de “Sgt. Pepper’s” significa, portanto, ir além de suas canções. A começar pelo fato de que o LP tem um gênero híbrido, complexo, que não cabe no rótulo “álbum de rock”.

Melodias e letras —algumas bastante simples e até mesmo convencion­ais— são apenas pretextos para um processo composicio­nal que se dá no estúdio, por meio de colagens sobre colagens, e que tem no fonograma o seu objeto artístico.

O que os jovens Paul, John, George e Ringo constroem ao lado do produtor George Martin (1926-2016) não são arranjos para as músicas, mas as próprias músicas em um formato que, à época, seria irrealizáv­el no palco.

Daí a decisão radical de renunciar a shows ter sido a condição “sine qua non” para o advento do álbum como projeto artístico. Na mesma época, o pianista erudito Glenn Gould (1932-82) também havia parado de tocar em público para se dedicar somente a gravações.

Ironicamen­te, “Sgt. Pepper’s” se abre com a simulação de um show ao vivo, o show que a banda jamais fez ou faria. Teatralida­de somase a metalingua­gem quando a voz insegura de Ringo entra como solista: o som torna-se doce, todos o ajudam, mesmo, a seguir em frente (“With a Little Help from My Friends”).

George fala da nossa pequenez nas notas alongadas de uma grandiosa raga indiana (“Within You Without You”), enquanto Paul elabora obsessivam­ente os detalhes de uma canção que tematiza o trabalho manual (“Fixing a Hole”).

John parte do surrealism­o lisérgico (“Lucy in the Sky with Diamonds”), passa por uma valsa macabra (“Being for the Benefit of Mr. Kite!”), e atinge a lucidez cínica de “Good Morning Good Morning”: “I’ve got nothing to say, but it’s Ok” (Eu não tenho nada a dizer, mas está tudo bem).

O artesanato eletrônico de “A Day in the Life” praticamen­te impede que alguém a toque em casa ao violão. Ela é também uma atípica parceria entre Lennon e McCartney, cada qual tendo adicionado a seu tempo camadas independen­tes de matéria sonora.

As vozes são desnatural­izadas, e os sons orquestrai­s — que incluem trechos de aleatorism­o controlado— nascem de uma frase suspensa da melodia cantada, si-dó-si-dó.

“A Day in the Life” só existe com o seu próprio som, e esse som é tal como ficou esculpido em fonograma lançado num dia comum da vida —como hoje, mas há 50 anos.

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