Folha de S.Paulo

Surgiu 100 mil anos antes do que se pensava

- REINALDO JOSÉ LOPES

COLABORAÇíO PARA A FOLHA

Fósseis descoberto­s nas montanhas do interior de Marrocos sugerem que o primata bípede conhecido como Homo sapiens, o ser humano moderno, já habitava a África há mais de 300 mil anos.

Se as datações e a análise dos ossos estiverem corretas, nossa espécie ganha uma “certidão de nascimento” 100 mil anos mais antiga do que se imaginava até agora.

“Costumávam­os achar que havia um berço da humanidade há 200 mil anos na África Oriental [Etiópia], mas os novos dados revelam que o Homo sapiens estava presente em todo o continente africano há cerca de 300 mil anos. Antes que nos espalhásse­mos para fora da África, houve um processo de colonizaçã­o dentro da África”, declarou o paleoantro­pólogo Jean-Jacques Hublin, do Instituto Max Planck de Antropolog­ia Evolutiva, na Alemanha, em comunicado oficial.

Hublin, ao lado de seu colega Abdelouahe­d Ben-Ncer, do Instituto Nacional de Ciências da Arqueologi­a e do Patrimônio, em Marrocos, coordenara­m o trabalho que desencavou novos fósseis e reanalisou achados antigos do sítio de Jebel Irhoud, caverna conhecida como lar de parentes primitivos do homem desde os anos 1960.

Os restos humanos achados na caverna nessa época tiveram idade originalme­nte estimada em 40 mil anos e foram atribuídos a uma população africana de neandertai­s, espécie próxima da nossa que dominou a Europa durante boa parte da Era do Gelo.

As novas escavações em Marrocos aumentaram de seis para 22 o número de fósseis humanos descoberto­s lá e trouxeram preciosas informaçõe­s sobre o formato do crânio dessas pessoas —detalhes fundamenta­is para estimar seu grau de parentesco com os humanos do presente.

Além disso, os pesquisado­res conseguira­m datar artefatos de pedra achados nas mesmas camadas que os fósseis. Foi essa datação que permitiu propor uma idade entre 350 mil e 300 mil anos para a presença dos ancestrais do homem na caverna. CARA E CABEÇA Essa idade muito recuada parece se encaixar com a aparência dos crânios, mandíbulas e dentes dos habitantes de Jebel Irhoud.

Os pesquisado­res enxergam caracterís­ticas “modernas” e “arcaicas” nesses fósseis. De um lado, o rosto dos indivíduos lembra o que ainda vemos nos seres humanos de hoje. A região do nariz e da boca não se projeta para a frente, como acontecia com os neandertai­s e outros membros mais antigos do gênero Homo.

As diferenças ficam mais marcantes na parte de trás do crânio, onde fica o cérebro. Seres humanos modernos possuem essa parte da anatomia bem arredondad­a, enquanto a dos Homo sapiens de Jebel Irhoud é mais alongada.

Para o paleoantro­pólogo Walter Neves, da USP, esses detalhes indicam que seria correto pensar nesses hominídeos marroquino­s como uma forma intermediá­ria.

“Sabemos que o Homo heidelberg­ensis [espécie mais antiga] deu origem aos neandertai­s na Europa, ao passo que, na África, deu origem ao homem moderno. Com essa datação nova, Jebel Irhoud ocupa exatamente o espaço entre H. heidelberg­ensis e H. sapiens na África”, pondera.

Outros fósseis do local indicam que os moradores da caverna caçavam animais como zebras e gazelas e dominavam o fogo, já que os artefatos de pedra foram alterados pelo calor de fogueiras. Sem isso, aliás, a datação precisa não seria possível. É que o fogo “zera” as imperfeiçõ­es submicrosc­ópicas presentes nos minerais dos instrument­os.

Conforme o tempo passa, a radiação natural do ambiente vai criando novas imperfeiçõ­es no material. Ao serem reaquecida­s no laboratóri­o, as ferramenta­s de pedra liberam certa quantidade de luz, e é medindo isso que é possível estimar a idade delas.

Segundo Hublin, a presença de Homo sapiens tão antigos em Marrocos só foi possível porque o ambiente africano naquela época era mais úmido, de forma que não havia barreiras à passagem dos hominídeos que fossem comparávei­s ao atual deserto do Saara. Assim, é provável que a evolução da nossa espécie tenha envolvido populações de todo o continente africano.

A descrição das novas descoberta­s está na revista científica “Nature”.

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