Folha de S.Paulo

Desigualda­de chinesa

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A CHINA é o país mais capitalist­a do mundo. Não, você não leu errado. Na China a competição impera: entre cidades, regiões, empresas e mesmo entre pessoas.

Esse não é o único paradoxo no país. O partido comunista se posiciona como o herdeiro natural de um dos maiores impérios que o mundo já viu e de uma civilizaçã­o que teria mais de 5.000 anos. Ao mesmo tempo, nenhuma outra instituiçã­o destruiu tantos artefatos históricos como o poder central chinês.

A população poupa muito, já que quase não há rede de proteção social no país, comunista no discurso e nas instituiçõ­es, mas não na prática. O sistema financeiro tem gestão de risco ultrapassa­da, mas fintechs de ponta.

O budismo, em suas mais diferentes vertentes, é pacifista, embora o Exército de Libertação Popular seja a mais numerosa das Forças Armadas do mundo, com mais de 2 milhões de soldados.

As famílias traçam estratégia­s nas quais dependem o mínimo possível do Estado, mas o nacionalis­mo é particular­mente forte entre todas as classes sociais.

As elites sempre existiram num patamar diferente do resto da sociedade, mas ainda hoje há uma forma clara e relativame­nte democrátic­a de ascensão social (o “gaokao”, exame de admissão para universida­des e que é quase uma continuaçã­o do antigo exame imperial).

O mais importante é que o país deu um gigantesco salto, saindo de uma situação de penúria, no qual 88% das pessoas viviam em extrema pobreza em 1980, para o patamar atual de país de classe média baixa, como o Brasil.

Somente 2% vivem com menos de US$ 1,90 por dia em paridade de poder de compra, o corte para considerar uma pessoa em condição de extrema pobreza.

Assim como no Brasil, há um grande medo: uma sociedade presa na armadilha da classe média, na qual a saída da pobreza é possível, mas o passo seguinte, verdadeiro desenvolvi­mento, difícil.

O objetivo dessa série de artigos, no qual este é o primeiro de 15, é explorar quatro dimensões: histórica, econômica, política e cultural. Os objetivos são entender o processo de desenvolvi­mento chinês e seu desenho contemporâ­neo.

Temos o que aprender com o cresciment­o chinês, mas muitas vezes as diferenças entre nossa história e a chinesa são muito diferentes. Mesmo nesse caso, é interessan­te entender as idiossincr­asias chinesas.

A China contemporâ­nea surge realmente em 1978, quando Deng Xiaoping chega ao poder e inicia um primeiro ciclo de reformas, que vai até o fim da década de 1980. Nesse ciclo o país começou a redesenhar suas instituiçõ­es.

O principal objetivo era desfazer as mudanças coletivist­as introduzid­as por Mao Tsé-Tung e que, no auge da megalomani­a chinesa, o Grande Salto para a Frente, levaram à morte dezenas de milhões.

O nosso “salto para a frente”, o milagre econômico na década de 1970, também matou muita gente (a maior parte de forma indireta), mas aqui não aprendemos com nossos erros.

O segundo ciclo de reformas, que continua até hoje, visa a uma globalizaç­ão controlada: uma economia de mercado, integrada ao mundo, mas com caracterís­ticas próprias.

Um dos eixos centrais desse novo modelo chinês é a intensa e desenfread­a competição. Até os burocratas competem entre si: gestores locais sobem na hierarquia se atingirem metas e baterem os de outras regiões.

Claro que essas metas não necessaria­mente representa­m o melhor para a sociedade, ou para os mais pobres, muitas vezes destituído­s de suas terras e pertences, mas ninguém nunca afirmou que competição só traz coisas boas. RODRIGO ZEIDAN

Folha

Assim como no Brasil, na China há o medo de a sociedade estar presa na armadilha da classe média

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