Folha de S.Paulo

Tais julgamento­s são abu-

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O estudante Carlos Alfredo Ramírez Torres, conhecido como “Pancho”, era um incômodo opositor ao governo de Nicolás Maduro em Mérida, noroeste da Venezuela.

Aos 27 anos, já no segundo curso universitá­rio (cursou economia e depois direito), ele liderava havia quase dez anos o Movimento 13, da Universida­d de Los Andes, e era assíduo participan­te dos protestos contra Hugo Chávez.

Católico fervoroso, conservado­r, chegou a se acorrentar diante do palácio de Miraflores no começo de 2013, quando havia rumores de que Chávez estava morto mas ainda não havia declaração oficial. Exigia, com o gesto, que o povo soubesse a verdade.

Na manhã de 15 de maio último, Pancho estava saindo de casa para uma reunião sobre mais uma paralisaçã­o geral quando foi cercado por policiais e levado até a sede do comando da Guarda Nacional. Ali foi impedido de contatar a família e advogados.

“O governador deu uma declaração ao canal Globovisió­n na qual acusou Pancho diretament­e pelas últimas mortes em Mérida. Duas horas depois, o ministro do Interior o acusou de assassinar um muchacho chamado El Cury”, diz o pai do estudante, Carlos Ramírez.

No dia seguinte, Ramírez conseguiu ver o filho enquanto era levado a um avião da Força Aérea venezuelan­a.

“Eles o mantiveram sem comunicaçã­o, com as mãos para trás e com um capuz na cabeça todo o tempo”, lembra. Depois disso, só tiveram notícias dele por uma ligação que fez à namorada para pedir um advogado no estado de Lara, a mais de 300 km de distância de onde foi preso.

“Ele chegou a Lara e o enviaram a um tribunal militar. Os advogados conseguira­m chegar até lá, mas lhes negaram acesso ao tribunal.” TRIBUNAL MILITAR preliminar com um defensor militar indicado pelo Estado.

A decisão foi a de que responderi­a ao processo numa prisão militar. Mas as acusações não têm nada a ver com aquelas feitas pelo governo.

São delitos tipicament­e militares: “ultraje ao sentinela” e “traição à pátria” —este último previsto para punir militares que planejem golpe de Estado, crime sujeito a pena máxima de 30 anos de prisão.

Desde então, nem os advogados nem a família souberam de Pancho. “Isso é um sequestro”, diz seu pai.

“É algo totalmente ilógico”, revolta-se sua namorada, a estudante de medicina Adelmina D’Ambrosio. “É uma questão política. Pancho mobiliza uma quantidade grande de gente, e o governador trata de sujar o seu nome. Ele não pertence a nenhum partido, mas a comunidade meridenha sabe quem ele é.”

De fato, desde que foi levado, a cidade ao pé da cordilheir­a dos Andes está repleta de carros com a frase “libertem Pancho”. O pedido surge em muros, vitrines e ruas.

Pelo menos outros 160 ativistas foram presos na Venezuela e estão sendo julgados por tribunais militares desde o começo dos protestos deste ano, segundo o advogado Gonzalo Himiob, cofundador da rede Foro Penal, que defende muitos deles.

“No começo dos protestos, o Ministério Público apresentav­a esses jovens aos tribunais, mas não pedia a sua prisão. O que aconteceu? O governo decidiu levá-los a tribunais militares”, resume.

Os tribunais militares passaram a ser adotados maciçament­e depois que a Procurador­a-Geral, Luisa Ortega Díaz, uma chavista histórica, passou a antagoniza­r o governo de Nicolás Maduro.

Além de se negar a processar os manifestan­tes, Ortega recorreu da decisão do Tribunal Supremo de Justiça de assumir os poderes da Assembleia Nacional, o que gerou a atual onda de protestos, e impôs recursos contra a proposta de constituin­te de Maduro. ABUSO sivos, segundo o direito internacio­nal, e violam a lei venezuelan­a. “O juiz natural de um civil é um tribunal civil. E a Constituiç­ão diz que a Justiça Militar se reserva a delitos de natureza estritamen­te militar, cometidos por militares ativos”, explica Himiob.

Em muitos casos, os advogados não conseguem contatar os detidos nem obter o processo, que corre sob sigilo; todos os depoimento­s são secretos e os detalhes não podem ser publicados.

Segundo os advogados, há relatos de tortura ocorrida em instalaçõe­s das Forças Armadas. “Em Carabobo [noroeste], temos o caso de 14 jovens presos que foram obrigados a comer macarrão cru com excremento­s humanos. Quando se negaram a abrir a boca, jogaram um gás de pimenta no nariz para que abrissem a boca, e os obrigaram a comer”, diz o advogado.

“Como sabemos? Isso está no expediente judicial. Mas nós, advogados, não podemos publicar essas atas.”

A advogada Lilia Camejo recebeu a reportagem poucos dias após a prisão de seu cliente, o dirigente do partido Voluntad Popular, Sérgio Contreras, detido em 10 de maio em Caracas quando participav­a de um protesto na região da Candelára.

Na hora da prisão, como mostram vídeos, segurava apenas um megafone. Mesmo assim, ele é acusado de traição à pátria, rebelião militar e subtração de material militar: a ficha policial afirma que ele carregava uma pistola pertencent­e à Polícia Nacional Bolivarian­a, cinco balas e explosivos caseiros.

Contreras é epiléptico. “Foi uma ação excessiva, havia 10 policiais sobre ele, ele foi arrastado por meia quadra, já dominado”, diz a sua mulher, Mariana Barrios. “Ele tinha muita dor nas costas, raspões no braço, que acontecera­m no momento de prisão, estiraram o músculo da perna direita”, completa a advogada.

“Passamos em cinco Corpos de Segurança [instalaçõe­s das forças de segurança] em Caracas procurando por ele. Finalmente o encontramo­s no fim da tarde na Divisão de Contrainte­ligência militar. Eu não podia entender como o meu marido, um civil que estava numa manifestaç­ão pacífica pedindo que a polícia não reprimisse porque havia velhos, crianças, estava na divisão de Contrainte­ligência militar! Não fazia sentido”, diz Barrios, que ficou sozinha com o filho de oito anos do casal.

Embora Camejo, a advogada, tenha conseguido comparecer à audiência de custódia, ela diz que não recebeu nenhuma cópia do processo, e nem a ata que a estabelece como representa­nte legal.

“Sem isso, faz uma semana que não consigo vê-lo na prisão”, disse ela à Pública, no final de maio. “Há violação do devido processo penal e dos direitos do Sérgio.”

Para as famílias dos ativistas presos, a luta tem sido ininterrup­ta, madrugando em frente a fortes militares para exigir alguma notícia dos seus. Depois de um mês de detenção militar, os pais de Pancho pediam uma “fé de vida”, uma prova de vida.

“Às vezes me sinto como se não tivesse forças, levanto deprimido”, diz Ramírez. “Mas as pessoas têm que ter em conta que o que está ocorrendo conosco pode ocorrer a qualquer um na Venezuela.”

“podia entender como o meu marido, um civil em uma manifestaç­ão pacífica, estava na Contrainte­ligência militar

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Natalia Viana/Agência Pública Protesto em Mérida pede libertação do estudante Carlos Alfredo Ramírez Torres, Pancho

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