Folha de S.Paulo

‘Serumanos’ ou baratas?

- JAIRO MARQUES COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; terça: Rosely Sayão; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

DEMOREI PARA entender que aquilo que vinha em minha direção, embrulhado em uma manta Paraíba e com uma toalha suja enrolada na cabeça simulando uma espécie de turbante, era uma figura humana. Parecia assustador­amente com um zumbi, um resto de gente, um bicho selvagem, sofrido, com pele e alma em frangalhos.

O centro de São Paulo sempre foi habitado por figuras exóticas, extravagan­tes, únicas, mas, em quase 20 anos, nunca vi tanto “serumano” vivendo como baratas, comendo restos de lixo pelas esquinas, andando desorienta­da, vagando em busca de um trocado para queimar em um cachimbo.

Aceitam qualquer coisa: uma bituca de cigarro, moeda de réis, a coxa creme já parcialmen­te comida e só no creme, o bagaço. Aceitam que se desvie o olhar, que se tape o nariz, que se ralhe ante a sua presença. Aceitam que se tenha medo deles ou, pelo menos, é o que lhes resta socialment­e, serem alvos de asco e de temor. Baratas.

Como a cidade vive um apagão de orientação, com semáforos queimados por aqui e por ali, o risco de esmagar um desses farrapos de gente no asfalto é imenso, pois eles vão cruzando as vias como se desfilasse­m num transe à la “Thriller”, de Michael Jackson.

Pensando bem, não dá para dizer que existir como destroço humano seja empecilho determinan­te para esse povo craqueiro, uma vez que diversos deles rastejam com pernas, braços, olhos, sentidos, histórias, memórias e dignidade já dilacerado­s. Alguns mal parecem sentir o frio cortante que chegou neste junho.

Também não há como afirmar se era melhor ou mais cômodo para os “cidadãos de bem” antes de o poder público criar a moda de jogar Detefon nas tocas onde essas pessoas costumam se proteger do sol e de julgamento­s, num ciclo de degradação, submissão ao vício e alucinaçõe­s.

Se a presença da cracolândi­a era um acinte para a cidade, ver o seu chorume espalhado por todo o bairro de Campos Elíseos —que remete a paraíso mitológico— causa efeitos antagônico­s: por um lado, exacerba a cobrança por uma limpeza “daquilo” que ameaça, aflige ou enfeia, por outro, corrói a humanidade dos indignados que clama por melhores maneiras de lidar com seres viventes.

Confinados, não davam tanto as caras na hora em que se levava o cachorro para fazer xixi na praça Princesa Isabel ou nos horários em que os trabalhado­res lotam restaurant­es de prato feito na região da República e até na boca da grã-fina Higienópol­is. Ou alguém se sente bem ao lado de baratas?

Espalhados, obrigam, mesmo que de relance, a formação de um pensamento a respeito do flerte que todos podemos ter com a indigência, seja como vítimas empurradas pela solidão, pela falta de amor, pelo desemprego, pelo prazer do tóxico; seja como parentes em busca de resgatar da lama algum ente perdido, mas amado.

Se de fato as baratas resistem até ao inferno da bomba atômica, talvez seja o caso de frear o gasto de tempo e de dinheiro querendo eliminá-las simplesmen­te. Pode ser necessário um esforço coletivo, solidário e humanitári­o para vê-las além de uma carapaça repugnante, para socorrê-las de suas realidades rastejante­s.

Aceitam que se tenha medo deles ou, pelo menos, é o que lhes resta socialment­e: serem alvos de asco e temor

jairo.marques@grupofolha.com.br

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