‘Serumanos’ ou baratas?
DEMOREI PARA entender que aquilo que vinha em minha direção, embrulhado em uma manta Paraíba e com uma toalha suja enrolada na cabeça simulando uma espécie de turbante, era uma figura humana. Parecia assustadoramente com um zumbi, um resto de gente, um bicho selvagem, sofrido, com pele e alma em frangalhos.
O centro de São Paulo sempre foi habitado por figuras exóticas, extravagantes, únicas, mas, em quase 20 anos, nunca vi tanto “serumano” vivendo como baratas, comendo restos de lixo pelas esquinas, andando desorientada, vagando em busca de um trocado para queimar em um cachimbo.
Aceitam qualquer coisa: uma bituca de cigarro, moeda de réis, a coxa creme já parcialmente comida e só no creme, o bagaço. Aceitam que se desvie o olhar, que se tape o nariz, que se ralhe ante a sua presença. Aceitam que se tenha medo deles ou, pelo menos, é o que lhes resta socialmente, serem alvos de asco e de temor. Baratas.
Como a cidade vive um apagão de orientação, com semáforos queimados por aqui e por ali, o risco de esmagar um desses farrapos de gente no asfalto é imenso, pois eles vão cruzando as vias como se desfilassem num transe à la “Thriller”, de Michael Jackson.
Pensando bem, não dá para dizer que existir como destroço humano seja empecilho determinante para esse povo craqueiro, uma vez que diversos deles rastejam com pernas, braços, olhos, sentidos, histórias, memórias e dignidade já dilacerados. Alguns mal parecem sentir o frio cortante que chegou neste junho.
Também não há como afirmar se era melhor ou mais cômodo para os “cidadãos de bem” antes de o poder público criar a moda de jogar Detefon nas tocas onde essas pessoas costumam se proteger do sol e de julgamentos, num ciclo de degradação, submissão ao vício e alucinações.
Se a presença da cracolândia era um acinte para a cidade, ver o seu chorume espalhado por todo o bairro de Campos Elíseos —que remete a paraíso mitológico— causa efeitos antagônicos: por um lado, exacerba a cobrança por uma limpeza “daquilo” que ameaça, aflige ou enfeia, por outro, corrói a humanidade dos indignados que clama por melhores maneiras de lidar com seres viventes.
Confinados, não davam tanto as caras na hora em que se levava o cachorro para fazer xixi na praça Princesa Isabel ou nos horários em que os trabalhadores lotam restaurantes de prato feito na região da República e até na boca da grã-fina Higienópolis. Ou alguém se sente bem ao lado de baratas?
Espalhados, obrigam, mesmo que de relance, a formação de um pensamento a respeito do flerte que todos podemos ter com a indigência, seja como vítimas empurradas pela solidão, pela falta de amor, pelo desemprego, pelo prazer do tóxico; seja como parentes em busca de resgatar da lama algum ente perdido, mas amado.
Se de fato as baratas resistem até ao inferno da bomba atômica, talvez seja o caso de frear o gasto de tempo e de dinheiro querendo eliminá-las simplesmente. Pode ser necessário um esforço coletivo, solidário e humanitário para vê-las além de uma carapaça repugnante, para socorrê-las de suas realidades rastejantes.
Aceitam que se tenha medo deles ou, pelo menos, é o que lhes resta socialmente: serem alvos de asco e temor
jairo.marques@grupofolha.com.br