Folha de S.Paulo

Mesmo que de forma atropelada por causa da operação na cracolândi­a, os leitos estão sendo disponibil­izados.

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Quais os principais gargalos?

No caso do crack, vejo três. O primeiro é essa miserabili­dade e vulnerabil­idade social de pessoas que acabam em situação de rua, consumindo uma droga barata e tóxica.

O outro são os casos de instabilid­ade clínica ou psicóticos internados em comunidade­s terapêutic­as. Ficam lá meses a fio, e o caso só se agravando. E o terceiro são as poucas vagas de internação. Elas não são o eixo central do planejamen­to terapêutic­o do dependente, mas, quando você precisa internar crianças e adolescent­es, não tem leito. E os Caps?

Os Caps [Centros de Atenção Psicossoci­al-Álcool e Drogas, que oferecem consultas com médicos e psicólogos] visam a reabilitaç­ão psicossoci­al. Quando a situação exige uma atuação mais intensiva, não são os melhores equipament­os. Outro problema é quando se trata de criança ou adolescent­e vitimado pela droga. Os Caps de infância ainda são poucos e precisam de muita qualificaç­ão.

Quando um adolescent­e precisa ser internado, só há um ou dois hospitais na cidade de São Paulo que aceitam esse tipo de internação e são poucos leitos. Muitas vezes o adolescent­e é internado em enfermaria­s de adultos, o que pelo ECA [Estatuto da Criança e do Adolescent­e] é proibido. O sr. mencionou as comunidade­s terapêutic­as. Qual o risco?

No interior, temos um grande número de comunidade­s terapêutic­as que nos preocupa muito. Por lei, elas são um regime de residência voluntária. Elas não podem fazer internaçõe­s compulsóri­as ou involuntár­ias. Elas não são um equipament­o de saúde, são um equipament­o social.

Portanto, uma pessoa clinicamen­te instável ser internada numa comunidade terapêutic­a não só é um crime legal como é uma situação de muito risco ao paciente.

E tem famílias que, na falta de equipament­os médicos, levam para lá seus familiares drogaditos, mesmo contra a vontade, e eles ficam por lá seis meses numa situação que caracteriz­a cárcere privado.

As comunidade­s terapêutic­as não são fiscalizad­as por nenhum órgão público. Por exemplo, o Cremesp só pode fiscalizar quando recebe uma denúncia de que há tratamento médico lá dentro.

Não se pode fazer tratamento de saúde em comunidade terapêutic­a. Essa é outra preocupaçã­o dessa atual fase da operação na cracolândi­a.

Infelizmen­te, existem muitos donos de comunidade­s terapêutic­as e de instituiçõ­es, algumas delas religiosas, com interesses privados. Qual o perigo que correm pacientes que são tratados nessas comunidade­s?

A síndrome de abstinênci­a é um quadro clinicamen­te instável, que pode até levar à morte. Pode gerar convulsões, desequilíb­rios hidroeletr­olíticos [que causam complicaçõ­es renais e cardiovasc­ulares]. É um quadro que não pode ser conduzido numa comunidade terapêutic­a. Isso vale para abstinênci­a do álcool, de cocaína e crack. Como minimizar esses riscos?

Existe uma resolução recente da Secretaria Municipal de Saúde que cria comunidade­s terapêutic­as de natureza médica. Mas elas também não podem fazer internaçõe­s involuntár­ias e não dão conta de casos clinicamen­te instáveis.

Para esses, tem que ser o hospital, preferenci­almente o hospital geral. Uma coisa é você tratar uma convulsão ou uma parada cardiorres­piratória num hospital psiquiátri­co, outra é num hospital geral. Em hospital psiquiátri­co, não há aparato para isso, não há intensivis­tas, por exemplo. Como deve ser o tratamento do dependente químico?

Precisa existir planejamen­to terapêutic­o individual­izado, cada usuário tem o seu percurso. Pode ser ambulatóri­o, centros de convivênci­a, internaçõe­s temporária­s. Mas se falta uma interligaç­ão entre os equipament­os da rede, não haverá eficiência no final do percurso de tratamento.

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