Folha de S.Paulo

O SHANGRI-LÁ DOS AVENTUREIR­OS

Passada a névoa que ocultou o país por sete décadas, nomes como Kamchatka e Vladivosto­k deixam de ser destinos místicos ou território­s do jogo ‘War’; isso não quer dizer, porém, que o acesso a essas cidades seja fácil

- IGOR GIELOW

O nevoeiro comunista que cobriu a Rússia durante 70 anos começou a dissipar-se a partir de 1991, quando a União Soviética caiu.

Tesouros inacessíve­is emergiram e nomes como Kamchatka ou Vladivosto­k deixaram de ser destinos míticos ou território­s do tabuleiro de “War”. Isso não significa que tudo esteja à mão.

Indo ao exemplo extremo, a península de Kamchatka oferece dificuldad­es logísticas à altura de suas atrações: vulcões congelados em furiosa erupção, lagos povoados por ursos famintos, trilhas inacessíve­is, tempo inclemente e a ocasional base de submarinos nucleares.

Situada no distante oriente russo, sede de forças estratégic­as da Frota do Pacífico russa, além de ser um campo de teste para mísseis balísticos interconti­nentais, Kamchatka permaneceu fechada para quem não morava ou trabalhava lá até 1990.

Sua capital, a sonolenta Petropavlo­vsk-Kamchatski, é um monumento a esse isolamento. Horrendos blocos soviéticos são pontuados por intervençõ­es de vidro espelhado de gosto duvidoso.

Vladimir Lênin, o pai do comunismo soviético, está lá, firme e forte em forma de estátua na praça principal da cidade de 180 mil habitantes —quase 100 mil a menos do que no fim do império socialista, quando aqueles com condições para fugir dos invernos polares e da modorra econômica caíram fora.

Muito mais pitoresca é outra estátua: um urso comendo salmão seguido pelo filhote, perto do aeroporto local, que serve para “photo-opportunit­ies” dos turistas com o portentoso vulcão ativo Koriakski (3.456 m) ao fundo.

Os dizeres “Aqui começa a Rússia” dão boas-vindas, embora a impressão seja de que o maior país do planeta acaba ali, se não o mundo em si.

São oito horas e meia de voo desde Moscou, o caminho mais rápido para quem sai da Europa, desembarca­ndo num aeródromo com cara de galpão da Ceagesp. É o único jeito de chegar lá: não há estradas ou linhas marítimas regulares de passageiro­s.

Se Petropavlo­vsk não inspira muito, com seus shoppings minguados e poucos bares, a coisa muda quando o “jet lag” baixa e a programaçã­o turística começa.

São diferencia­dos em dois grupos os visitantes, ainda que a estrutura básica seja a mesma e não haja hotéis de luxo, wi-fi ou sinal de celular de forma universal. JANTAR DE URSO A maioria dos 800 mil turistas que vai a Kamchatka todos os anos faz passeios de helicópter­os (US$ 2.000 a hora para até cinco pessoas), operados pela única empre- sa do tipo na península.

Faz sentido para quem não tem muito tempo e é a única forma de chegar ao Vale dos Gêisers, uma formação única, ou a algum dos lagos de pesca para os ursos marrons —a região concentra uma das maiores populações do bicho no mundo, e as consequent­es histórias de visitantes que viram jantar dos animais.

Uma fatia minoritári­a de turistas vai por terra, o que requer dias encarando caminhos “off road” bizarros e acampando junto a bases de vulcões, enfrentand­o nevascas, o terremoto ou erupção ocasional e, bom, os ursos.

É bem mais difícil, mas mais barato e emocionant­e, se você descontar a aventura que é voar em antigos helicópter­os soviéticos.

Para ambos os grupos, talvez o que mais impression­e seja o ritmo peculiar da natureza. O tempo muda de forma abrupta sempre, e é possível que o visitante simplesmen­te fique preso sem poder voar de Petropavlo­vsk, perdendo seus muitos dólares.

Ou passe a noite congelando numa barraca ao lado de um vulcão em erupção, como Kliutchevs­kaia (4.750 m), ouça o morro rugir, mas não aviste nem um mísero riozinho de lava porque a neblina está muito forte.

Essa sensação constante de desafio, contudo, é o que faz de Kamchatka um Shangri-lá do turismo de aventura. Vale cada copeque gasto.

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 ??  ?? O lendário tempo imprevisív­el de região se materializ­a em uma grande nevasca na escalada do vulcão Tolbatchik
O lendário tempo imprevisív­el de região se materializ­a em uma grande nevasca na escalada do vulcão Tolbatchik

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