Folha de S.Paulo

Janot, o tatuador-geral da República

- REINALDO AZEVEDO

“EU SOU ladrão e vacilão”.

O adolescent­e que teve a testa marcada por homens comuns, que se querem —e devem ser— honrados, traduz aquilo que, como sociedade, fizemos do que fizeram de nós.

Nem a vítima nem seus algozes sabiam que ali estava um emblema destes dias. Quando um historiado­r decidir esmiuçar o Zeitgeist, o espírito deste tempo, há de se debruçar sobre esse evento aparenteme­nte irrelevant­e para concluir que ele revela uma mentalidad­e, plasmada, sim, pelas vicissitud­es do cotidiano, pela vida e seu ofício, pelas dificuldad­es que todos experiment­amos, afinal, na própria pele. Mas não só isso. Todos temos também um juízo de valor sobre o poder, seus agentes e o bem ou mal que nos fazem.

Aquele historiado­r há de proceder como o norte-americano Robert Darnton no excelente “O Grande Massacre de Gatos e Outros Episódios da História Cultural Francesa”. Em seis capítulos, ele expõe o modo de pensar da França do século 18, na passagem do Antigo para o Novo Regime, por intermédio da análise de narrativas populares.

Uma delas trata de um episódio ocorrido ali por 1730. Operários de uma tipografia da rua Saint-Séverin, em Paris, resolvem matar todos os gatos da vizinhança. Na origem do massacre, a revolta contra o patrão e as aviltantes condições de trabalho. A matança começou por “La Grise”, a gata predileta da mulher do seu algoz.

Seria então o massacre mera metáfora da revolta do trabalho contra o capital? Darnton vai além dessa facilidade. Os gatos já não gozavam de boa reputação —trariam algo de maligno. Havia a tradição de torturá-los no Carnaval e outras festividad­es. O ódio episódico desencadeo­u a matança, mas esta não teria acontecido sem um lastro cultural.

Aquele acusado de ser um “ladrão de bicicleta” teve, segundo rosnou a extrema direita nas redes sociais, o merecido tratamento. A extrema esquerda não chegou a transformá-lo num herói, mas ensaiou o discurso das iniquidade­s sociais, o que é factualmen­te falso.

Notem que o rapaz não foi espancado, linchado ou submetido a barbaridad­es típicas dessas situações. Ele foi “marcado”. O que interessa é submetê-lo ao opróbrio. A questão concerne à política. Rodrigo Janot, procurador-geral da República, manipulava o instrument­o que gravou a testa do garoto. Exagero retórico? Estamos no terreno de simbolismo­s reveladore­s.

Então não é isso o que vem fazendo dia após dia, com a nossa —da imprensa— diligente colaboraçã­o, o MPF? Todos os políticos, de todas as tendências e matizes, trazem na testa “Eu sou ladrão e vacilão”. É um truísmo: as pessoas fazem justiça com as próprias mãos quando não confiam naquela que lhes oferece o Estado. Sentem que precisam se proteger e purgar os pecados do mundo. E então se têm os bodes expiatório­s, os gatos expiatório­s, os homens expiatório­s. E serão brutais segundo suas tradições e superstiçõ­es.

A miséria moral é ainda maior: juízes estão a fazer justiça com a própria toga. Procurador­es estão a fazer justiça com a própria página no Facebook. Especulado­res disfarçado­s de jornalista­s estão a fazer justiça com suas próprias apostas na variação cambial.

Um amigo, de um tempo extinto, está lendo “Dos Delitos e das Penas”, que Cesare Beccaria escreveu aos 26 anos. Deveria ser obrigatóri­o a todos os jornalista­s, mais aos investigat­ivos. Destaca um trecho e me manda por WhatsApp: “O verdadeiro tirano começa sempre reinando sobre a opinião; quando é senhor dela, apressa-se a comprimir as almas corajosas, das quais tem tudo que temer porque só se apresentam com o archote da verdade, quer no fogo das paixões, quer na ignorância dos perigos.”

Entendi. O “janotismo” tentou me marcar e busca gravar o seu emblema, como tatuagem, na testa de qualquer um que rejeite o fascismo de esquerda como consequênc­ia natural da caça aos ladrões.

O garoto da testa tatuada é símbolo de um tempo em que primeiro se pune e depois se investiga

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