Folha de S.Paulo

MINHA HISTÓRIA UMA TRANS NO SUPREMO

Advogada vai ao STF para defender o direito de transexuai­s, como ela, mudarem de nome e sexo no registro civil sem a necessidad­e de cirurgia

- ESTELITA HASS CARAZZAI

Eu me sabia mulher desde criança. Você percebe que alguma coisa não está certa com você. Eu sentia um desconfort­o enorme em vestir roupas masculinas, por exemplo. Era colocar uma calça, eu chorava. Você chora, mas não sabe exatamente o porquê.

Na escola, a piazada me batia, cuspia, chutava. Foi um trauma muito grande. Na minha cabeça, eu sabia que eu era mulher. Mas você não sabe como lidar.

Quando eu me descobri trans, não tive coragem de assumir. Durante grande parte da minha vida, eu represente­i um papel porque eu já sabia da dificuldad­e da transição. Estudei e cursei a faculdade de Direito como Marcus, meu nome de batismo. Mas foi durante a faculdade que eu comecei a fazer a transição. Deixei o cabelo crescer, fiz laser para tirar a barba, apliquei silicone... Não tinha mais como voltar atrás. E aí teve a ruptura com minha família. Eles não falam comigo há três anos.

Nessa época, minha mãe foi diagnostic­ada com câncer. Ela veio morar comigo e eu cuidei dela durante dois anos, até que ela faleceu. A minha mãe foi me aceitar nos últimos 15 dias de vida.

Aí pensei: agora tenho que fazer valer meu curso de direito. Me matriculei em um cursinho on-line para a OAB, que era mais barato, e estudava o dia inteiro. Passei com uma média de 9,95. Aí já comecei a advogar. Isso faz três anos.

Para mudar de nome, eu fiz uma ação de retificaçã­o de prenome e designativ­o de sexo. Era Marcus Alessandro, passou para Gisele Alessandra. Gisele foi uma homenagem à [modelo] Gisele Bündchen. As pessoas me chamavam assim. Eu era alta e bem magra, e falavam: “Ah, lá vem a Gisele”. É um nome bonito, a modelo é maravilhos­a, eu vou homenageá-la. Talvez até fosse uma espécie de bullying. Mas eu reverti essa situação. Tem que levar com bom humor.

No processo de retificaçã­o, a vida da gente é escrutinad­a. A Justiça exige que você tenha um laudo de um psicólogo ou psiquiatra atestando que você é trans. É a patologiza­ção. Para a Justiça, você é uma pessoa doente e tem que provar essa condição.

O cenário ideal é que não fosse considerad­o doença, co- mo acontece na Argentina, por exemplo. Você explica a situação e, automatica­mente, dão a você uma nova certidão de nascimento, sem passar por um processo judicial.

No Brasil, é muito desgastant­e. Você fica à mercê do juiz. Tem juiz que muda o prenome, mas não o sexo; tem juiz que não muda nem o prenome nem o sexo; outros que só aceitam com cirurgia. Em alguns casos, não pode ter restrição ao crédito, porque acham que você quer fugir de dívida e, por isso, mudar o nome. É ridículo. Por isso nós estamos lutando para pacificar isso no STF.

Foi minha primeira sustentaçã­o oral. E não é fácil. Foi um grande desafio, chegar direto ao STF, com poucos anos de advocacia. Eu tive cinco dias para preparar minha fala. Mas na hora, por incrível que pareça, eu estava muito tranquila. Eu abstraí de tudo; só me concentrei nos ministros.

Eu lembrei muito do caso da Dandara [Kethlen], a trans que foi espancada [no Ceará, em fevereiro deste ano]. Aquilo me marcou de tal maneira... Ela foi espancada à luz do dia. Os vizinhos viram, e ninguém fez nada. Até quando? Por que essa violência? Isso tem que acabar. Está ligado a um discurso de ódio, o que é um retrocesso. Muita coisa melhorou, mas ainda tem muita coisa a ser feita.

A ação do STF é de uma importânci­a extrema, porque vai criar uma jurisprudê­ncia, um padrão. Tem muitas pessoas que não querem fazer uma cirurgia [de readequaçã­o genital], que é invasiva, pode não dar certo e coloca em risco a sua vida. O princípio da dignidade humana está na Constituiç­ão. Você não pode atrelar isso a uma cirurgia. É inadmissív­el. Eu não fiz a cirurgia, nem pretendo fazer. Estou feliz assim.

Depois da minha fala no STF, vários trans entraram em contato comigo, chorando, pedindo ajuda porque não aguentam mais constrangi­mento. E não faz nem uma semana. Então, as pessoas estão sofrendo e estão desprotegi­das. Não sabem a quem recorrer. No próprio Legislativ­o, esse tema é um tabu. Você coloca qualquer coisa em votação e é rejeitado.

Eu sou uma sobreviven­te. Mas outras não conseguira­m. Há pessoas morrendo a pauladas, e acabam enterradas sem retificar o nome, sem o nome com o qual elas se identifica­ram a vida inteira.

Até agora, eu sobrevivi. Mas não sei se vou continuar sobreviven­do. Eu pensei várias vezes em suicídio. Quando eu tinha 12 anos, eu tentei. Mas eu estava perdida, me sentia um monstro. E ainda não se fala disso nas escolas.

É muito estimulant­e militar nessa área, mas o que eu mais gosto é da área criminal. É minha área de especializ­ação. Todos nós nascemos livres; o que dá a alguém o poder de tolher a sua liberdade? Nunca tinha me ocorrido, mas eu também me senti presa por muito tempo, num corpo que não era meu. É uma outra luta pela dignidade.

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A advogada criminal Gisele Alessandra, que também milita pelos direitos LGBTs

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