Folha de S.Paulo

Amor e batatas

- COLUNISTAS DA SEMANA: sábado: José Simão, domingo: Marcius Melhem, RICARDO ARAÚJO PEREIRA Gregorio Duvivier, terça: José Simão, quarta: Reinaldo Figueiredo,

Os poetas cantam beijos loucos, gritos roucos, ânsias —mas às batatas não dedicam nem um epigrama

OS POETAS têm falado muito sobre amor, pouco sobre batatas, e nada sobre a relação entre o amor e as batatas. É muito triste que tenha de ser eu a preencher as lacunas que a grande literatura vai deixando.

Talvez o problema seja meu: na minha vida, o amor manifestou-se menos sob a forma de grandes gestos e mais sob a forma de batatas. Os poetas cantam beijos loucos, gritos roucos, lágrimas, ânsias, despedidas, traições, ausências —mas às batatas não dedicam nem um epigrama.

É o seguinte: quando eu era pequeno, a minha avó fazia o almoço muito antes da hora, para que nada faltasse. Ela não tinha uma inclinação natural para beijar ou abraçar, mas fazia outras coisas.

Quando o ônibus do colégio me vinha buscar ela ficava a olhar, à janela, até eu dar a curva. E à tarde, quando o ônibus me trazia, ela já estava na mesma janela, à espera.

Eu tinha seis ou sete anos e ficava com a sensação de que ela ficara ali o dia todo, com a vida suspensa. Hoje sou adulto e a razão dizme que não era assim —mas o coração continua a não ter a certeza.

No fim de semana, muito antes da hora do almoço, ela fritava batatas, punha num prato, e depois cobria com a tampa de uma panela. O vapor condensava-se no interior da tampa e depois a umidade chovia sobre as batatas. Por isso, as batatas ficavam moles.

Na casa da minha avó, nunca comi batatas que não fossem moles. Quando hoje me põem no prato batatas estaladiça­s eu penso: essa pessoa sabe fritar batatas, mas ela não me ama. Não fez as batatas com aquela antecedênc­ia. Arriscou que as batatas não estivessem prontas quando eu quisesse almoçar.

Batatas estaladiça­s, fica o leitor avisado, são cruéis. Têm arestas aguçadas que ferem o céu da boca, e estão muito consciente­s do seu próprio mérito, reluzentes de óleo. As batatas moles, tubérculos humildes e meigos, suportam com paciência a aflição amorosa que as tornou moles, e a sua indolência morna tranquiliz­a quem estiver nervoso.

Penso muitas vezes naquele momento, no fim do “Cidadão Kane”, em que ele, mesmo antes de morrer, diz “Rosebud”, o nome de um trenó que tinha quando era criança. Eu, muito provavelme­nte, direi: “batatas moles”.

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Luiza Pannunzio

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