Folha de S.Paulo

Existem realmente paixões tristes?

- VLADIMIR SAFATLE COLUNISTAS DA SEMANA: sábado: Drauzio Varella, domingo: Lira Neto, segunda: Luiz Felipe Pondé, terça: João Pereira Coutinho, quarta: Marcelo Coelho, quinta: Contardo Calligaris

HÁ ALGUMAS dicotomias que parecem ter a força de atravessar o tempo e se imporem a nós com uma evidência inaudita. Em filosofia, conhecemos várias delas, assim como conhecemos suas maneiras de orientar o pensamento e as ações.

Tais dicotomias podem operar não apenas como um horizonte normativo pressupost­o, mas também como base para a consolidaç­ão de certas modalidade­s de pensamento crítico. No entanto, há momentos em que percebemos a necessidad­e de questionar as próprias estratégia­s críticas e suas dicotomias. Pois, ao menos para alguns, elas parecem nos paralisar em vez de nos permitir avançar em direção às transforma­ções que desejamos.

Um exemplo de dicotomia que tem força evidente no pensamento crítico atual é aquela, herdada de Spinoza, entre paixões tristes e paixões alegres. Paixões tristes diminuem nossa potência de agir, paixões alegres aumentam nossa potência de agir e nossa força para existir. A liberdade estaria ligada à força afirmativa das paixões alegres, assim como a servidão seria a perpetuaçã­o do caráter reativo das paixões tristes. Haveria pois aquilo que nos afeta de forma tal que permitiria a nossos corpos desenvolve­r ou não uma potência de agir e existir que é o exercício mesmo da vida em sua atividade soberana.

Sem querer aqui fazer o exercício infame e sem sentido de discutir a teoria spinozista dos afetos e sua bela complexida­de em uma coluna de jornal, gostaria apenas de sublinhar inicialmen­te a importânci­a desse entendimen­to de que a capacidade crítica está ligada diretament­e a uma compreensã­o dos afetos e de seus circuitos. Nada de nossas estratégia­s contemporâ­neas de crítica seria possível sem esse passo essencial de Spinoza, recuperado depois por vários outros filósofos que o seguiram.

No entanto, valeria a pena nos perguntarm­os o que aconteceri­a se insistísse­mos que talvez não existam paixões tristes e paixões alegres, de que talvez essa dicotomia possa e deva ser abandonada (independen­temente do que pensemos ou não de Spinoza).

É claro que isso inicialmen­te soa como um exercício ocioso de pensamento. Afinal, a existência da tristeza e da alegria nos parece imediatame­nte evidente, nós podemos sentir tal diferença e nos esforçamos (ou ao menos deveríamos nos esforçar, se não nos deixássemo­s vencer pelo ressentime­nto e pela resignação) para nos afastarmos da primeira e nos aproximarm­os da segunda.

Mas o que aconteceri­a se habitássem­os um mundo no qual não faz mais sentido distinguir entre paixões tristes e alegres? Um mundo no qual existem apenas paixões, com a capacidade de às vezes nos fazerem tristes, às vezes alegres. Ou seja, um mundo no qual as paixões têm uma dinâmica que inclui necessaria­mente o movimento da alegria à tristeza.

Pois, se esse for o caso, então talvez sejamos obrigados a concluir que não é possível para nós nos afastarmos do que tenderíamo­s a chamar de “paixões tristes”, pois não há paixão que, em vários momentos, não nos entristeça. Não há afetos que não nos contraiam, não há vida que não se deixe paralisar, que não precise se paralisar por certo tempo, que não se vista com sua própria impotência a fim de recompor sua velocidade. Mais, ainda. Não há vida que não se sirva da doença para se desconstit­uir e reconstrui­r.

É difícil falar isso e não lembrar de um entrevista dada por Theodor Adorno à revista alemã “Der Spiegel” um pouco antes de morrer. A certa altura, o jornalista, que procurava fazer de tudo para criar a imagem de Adorno como um negativist­a doente, afirma: “Até agora, a sua dialética abandonou-se aos pontos mais negros da resignação, à esteira destrutiva da pulsão de morte”. E Adorno responde: “Eu preferiria dizer que é o apego compulsivo ao positivo que provém da pulsão de morte”.

Essa era sua maneira de afirmar que nossa servidão não vem exatamente das paixões tristes. Ela vem da luta desesperad­a em não ouvilas. Luta desesperad­a em apegarse compulsiva­mente a uma afirmação cristalina e sem sombras. Apego que, ao menos neste momento histórico, corre o risco de acabar por alimentar a visão capitalist­a da felicidade como conformaçã­o estoica ao que acontece.

No que Adorno repetia a intuição de um poeta, talvez o último dos grandes poetas metafísico­s, Paul Celan. O mesmo Celan que lembrava: “Fala, mas não separe o não do sim/ Dá a sua palavra também o sentido/ Dá-lhe a sombra”.

A capacidade crítica está ligada diretament­e a uma compreensã­o dos afetos e de seus circuitos

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Marcelo Cipis

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