Folha de S.Paulo

A ética da toga

- OSCAR VILHENA VIEIRA

TEM SE tornado cada vez mais comum a reivindica­ção, especialme­nte por parte de economista­s (e eventuais políticos embaraçado­s nos escândalos de corrupção), de que o Judiciário deveria adotar uma postura mais consequenc­ialista. Em seu último artigo nesta Folha, “A paixão política costuma cobrar caro”, o exministro Delfim Netto parece sugerir que o Supremo deveria pautarse mais por uma ética de “responsabi­lidade” do que por uma ética de “convicção”, tomando emprestado a terminolog­ia de Max Weber.

Poucas pessoas discordam da proposição de que juízes, especialme­nte numa corte suprema, deveriam agir com prudência, levando em consideraç­ão eventuais consequênc­ias negativas de suas decisões sobre a justiça social, a economia ou a estabilida­de democrátic­a. Isso não pode significar, no entanto, que magistrado­s devam tomar as eventuais consequênc­ias de suas sentenças como razão fundamenta­l para sua tomada de decisão, como parece ter ocorrido no julgamento do Tribunal Superior Eleitoral.

Ao Judiciário cumpre uma função preordenad­a pelo direito. Sua autoridade deriva de sua capacidade de aplicar de forma coerente e imparcial as normas jurídicas. As razões fundamenta­is que devem orientar suas decisões são, portanto, aquelas estabeleci­das pelo direito. Quando uma questão lhe é apresentad­a, o juiz deve consultar o direito para determinar qual a conduta a ser seguida. Se o juiz se afasta desse tipo de ética baseada em regras, princípios e valores que são estabeleci­dos pelo direito, passando a basear suas decisões nos ocasionais resultados que dela derivarão, a função jurisdicio­nal terá se convertido em função política. O que é muito ruim, por diversos motivos.

Em primeiro lugar, porque o direito tem uma função essencial na estabiliza­ção de expectativ­as, favorecend­o a cooperação social, o desenvolvi­mento econômico e a própria consolidaç­ão da democracia. Para isso, ele precisa ser devidament­e aplicado, sancionand­o os oportunist­as. Sem que o magistrado imponha de maneira imparcial as regras do jogo àqueles que delas se afastam, desaparece­m os incentivos para que os demais jogadores cumpram suas obrigações. Ao pendurar a toga, dando prevalênci­a a uma ética de responsabi­lidade em detrimento a uma ética de princípios (jurídicos), ainda que em benefício de uma estabilida­de política ou econômica imediata, o Judiciário poderá estar contribuin­do para ampliar a instabilid­ade e a desconfian­ça no longo prazo.

Numa democracia essa questão é ainda mais grave, pois magistrado­s não são eleitos. Não têm mandato para fazer escolhas em nome de terceiros, exceto aquelas determinad­as pelo direito. Diversamen­te dos representa­ntes políticos, também não podem ser sancionado­s pelos eleitores em face das eventuais escolhas erradas que fazem. Quando não gostamos dos resultados da política adotada por um governo ou pelas escolhas feitas por um parlamenta­r, simplesmen­te votamos em outro partido na próxima eleição. Mas não podemos fazer o mesmo com juízes. Como não respondem politicame­nte pelas suas decisões, não deveriam tomar decisões a partir de uma ética inerenteme­nte política, como nos ensina Max Weber. A melhor contribuiç­ão da magistratu­ra nesse momento de crise é não abdicar de suas responsabi­lidades perante o direito.

Seojuizsea­fastada ética baseada em regras, a função jurisdicio­nal se converte em função política

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