Folha de S.Paulo

NEGRO É A COR MAIS CORTANTE

Folha percorre o subúrbio carioca onde viveu o escritor Lima Barreto, homenagead­o da Flip e tema de biografia que analisa questão racial

- MAURÍCIO MEIRELES

O vento frio vem da Serra dos Órgãos, bagunça os cabelos, apaga a chama dos isqueiros, levanta a poeira das esquinas. No século passado, acreditava-se que essa mesma brisa podia curar os tuberculos­os.

“Estamos aqui na Suíça brasileira! Espera aí que eu vou pegar meu xale!”, ri a historiado­ra e antropólog­a Lilia Moritz Schwarcz.

A piada dela faz sentido. Estamos em Todos os Santos, no subúrbio do Rio de Janeiro, onde Lima Barreto (18811922) viveu. O escritor, homenagead­o da Flip (Festa Literária Internacio­nal de Paraty) deste ano, é tema de uma biografia escrita pela autora, que chega às livrarias.

É o primeiro retrato de fôlego do autor desde a pesquisa de Francisco de Assis Barbosa, nos anos 1950, que volta às prateleira­s, pela Autêntica.

Mesmo que, em dezembro, o subúrbio seja associado a um terrível calor, chalés em estilo suíço multiplica­m-se pelas ruas —aqui era lugar de tempo frio e ar puro. “Lima dizia que o verdadeiro suburbano é o da linha do trem”, diz Schwarcz, que usa no livro o conceito de “literatura em trânsito” como uma das definições da obra do autor.

A linha férrea que corta o bairro, fundada em 1855, une e separa a província carioca —por ela, as massas de funcionári­os públicos que serviam à monarquia e, depois, à República iam trabalhar no centro da cidade. Lima, um deles, pegava um trem de segunda classe para ir a seu emprego de amanuense.

Voltava para cá observando os tipos: trabalhado­res, moças soltando suspiros para ver se um cavalheiro cedia o lugar. Observava a paisagem pela janela e achava que no subúrbio nada combinava, mas sentia afeto pelo lugar.

“Lima Barreto é sempre um deslocado. Está no subúrbio, mas se sente diferente dos suburbanos. No centro, porém, se sente mais suburbano”, afirma a historiado­ra.

A diferença da nova biografia em relação à anterior é tratar amplamente da questão racial. Lima era negro, descendent­e de escravos. E dedicou-se a retratar os tipos marginais da sociedade, além de denunciar com sua língua ferina os vícios da Primeira República e da vida literária.

Assim, o Lima Barreto que surge é o dos direitos civis —o escritor brilhante, mas que não conseguiu ascender por causa de sua cor.

Fizemos um recorte na sua biografia para conhecer um Lima específico: o cronista dos subúrbios cariocas. Partimos em uma expedição com a historiado­ra pela região, para ver as ruas que tomam caminhos inesperado­s, as calçadas esburacada­s, os ladrilhos do casario e as pessoas descritas por Lima.

O caminho do autor para casa era longo, não só por causa das ladeiras, mas pelos bares, tomando parati, a cachaça da época. O primeiro que encontramo­s é o Bar da Loura.

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