Folha de S.Paulo

Obra analisa sonhos de alemães sob o nazismo

Relatos a jornalista, de 1933 a 1939, incluem sumiço de paredes e proibição da palavra ‘eu’

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Imagine que houvesse um sismógrafo para detectar o totalitari­smo. As placas tectônicas movem-se nos subterrâne­os, e o aparelho risca suas linhas de alerta como se dissesse que a catástrofe vem aí.

É essa a impressão despertada por “Sonhos do Terceiro Reich”, trabalho da jornalista e ensaísta alemã Charlotte Beradt que chega agora às livrarias pela Três Estrelas, selo editorial do Grupo Folha.

De 1933, quando Hitler chega ao poder, a 1939, quando começa a Segunda Guerra, Beradt dedicou-se a recolher sonhos que a costureira, o vizinho, o leiteiro, a tia, amigos —300 pessoas no total— tinham com o regime.

Escondeu as notas na biblioteca porque estava ciente de que o material era subversivo. Beradt também os enviou a endereços em diversos países, prevendo que seria obrigada a fugir —era judia e ligada ao partido comunista.

São um surpreende­nte relato sobre os efeitos de um regime totalitári­o na psique dos cidadãos. “O líder nazista que afirmou que só durante o sono se tem vida privada subestimou as possibilid­ades do Terceiro Reich”, escreve ela.

“O sonho se mostra um lugar de resistênci­a. As pessoas inventam jeitos de dizer não. O mais louco é como surgem exemplos de como a resistênci­a é inútil”, diz o psicanalis­ta Christian Dunker, que assina o prefácio da nova edição.

A inutilidad­e de resistir aparece, por exemplo, em sonhos sobre a vigilância.

Em 1934, um médico sonhou que seu apartament­o e os de vizinhos perdiam as paredes. Um megafone dizia: “De acordo com o edital sobre a eliminação das paredes...”

Há tentativas de resistênci­a. Um ano antes, uma faxineira já havia sonhado falar russo —língua que não conhecia— para que ela mesma não se entendesse. Um homem sonhou apenas com formas geométrica­s abstratas porque sentia ser “proibido sonhar”.

Os sonhadores também revelam a vergonha de não conseguir se insurgir ao perceber que não é seguro. Muitos relatam sentimento­s de humilhação —ou de culpa ao cometer covardias morais.

Vale ressaltar o caráter premonitór­io de sonhos, que apontava uma realidade que só se tornaria mais clara com a evolução do nazismo. “Na história da psicanális­e foi discutido se sonhos eram telepático­s, premonitór­ios. Eles projetam para o futuro uma realização do desejo. Nos casos do livro, estavam um passo à frente da história”, diz Dunker.

Muitas das histórias revelam aniquilaçã­o da individual­idade ante o coletivism­o de um sistema totalitári­o. Em um dos mais explícitos, uma mulher sonha que as palavras “Senhor” e “eu” são proibidas.

Para Dunker, é como se houvesse um “colaboraci­onismo” psíquico. Quase no fim do trabalho de Beradt, ela relata sonhos em momentos quando resistir aos nazistas seria ainda mais pedregoso. E um homem sonha ser amigo de Hitler. (MAURÍCIO MEIRELES) AUTORA Charlotte Beradt TRADUÇÃO Silvia Bittencour­t EDITORA Três Estrelas QUANTO R$ 34,90 (184 págs.)

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