Folha de S.Paulo

Apesar de minúcia e rigor, biografia se ressente de anacronism­os

- ANTONIO RISÉRIO

FOLHA

Já se falou de uma linha de continuida­de entre o mulato Machado de Assis e o mulato Lima Barreto. Mas um foi também o avesso do outro.

Passadas as turbulênci­as infantojuv­enis, Machado levou vida sóbria, confortáve­l e segura. Lima, depois de uma infância tranquila, foi pobre, anarquista, amalucado, alcoólatra, caindo de bêbado pelas ruas do Rio.

Machado foi romancista da classe dirigente e de seus subúrbios ricos. Lima abria o foco sobre o conjunto do mundo social carioca, centrando a luz na dor dos mais humildes. E com um conhecimen­to de arquitetur­a e urbanismo superior ao do meio literário brasileiro.

Machado sempre posou de branco, silenciand­o sua situação racial. Lima encarou o racismo e falava de seus antepassad­os escravos. “Nasci sem dinheiro, mulato e livre”, escreveu.

Em seu “Diário Íntimo”, anotou: “Escreverei a História da escravidão negra no Brasil e sua influência na nacionalid­ade” —o que levou Gilberto Freyre a dizer que tinha realizado, à sua maneira, o sonho textual do romancista.

Esta é a personagem que Lilia Moritz Schwarcz biografou em “Lima Barreto: Triste Visionário”. Um ato de coragem, depois que Assis Barbosa compôs “A Vida de Lima Barreto”.

E a obra é admirável, feita com minúcia e rigor. Com pleno conhecimen­to da vida do autor e da vida social brasileira no período. É sua grande virtude contextual: Lima “in situ” —e em situação.

Mas o livro também se ressente de anacronism­os e idealizaçõ­es. E toma como definitivo­s o politicame­nte correto e o jargão acadêmico-racialista hoje em voga.

Isto é: “termos nativos” da sociedade norte-americana, produtos do horror puritano às misturas e mestiçagen­s, que os movimentos negros e o “establishm­ent” universitá­rio importaram para cá.

Enfim, coisas que Lima classifica­ria talvez como “bovarismos”. E com ele concordari­a Stella de Oxóssi, Odé Kayodé, ialorixá-mor do Brasil, definindo-se não como negra, mas como marrom.

Na capa, quase um hiperreali­smo emprenhado de expression­ismo, estampa-se a ânsia de tratá-lo não feito “mulato livre”, mas “afrodescen­dente”.

Lima —cabeça mais sociológic­a do que antropológ­ica— não se voltou para culturas de origem negroafric­ana (a “alma nagô” só vai ingressar em nossa literatura com “O Feiticeiro” de Xavier Marques). Sua preocupaçã­o é o mulato carioca em busca de integração e ascensão sociais.

E terminamos o livro com uma frustração. Lilia fala que Lima cultivou uma “forma literária afrodescen­dente”. Mas não diz o que isto significa.

Pelo contrário. Passa anosluz distante do campo das estruturas textuais. Como se a coisa pudesse se resolver em metafísica somática e não na materialid­ade da escrita.

Mas, no fim das contas, merece nosso aplauso. Para quem curte literatura brasileira, é leitura quase obrigatóri­a. ANTONIO RISÉRIO

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