Folha de S.Paulo

Contra o pesadelo, falta um sonho

- CLÓVIS ROSSI COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Mathias Alencastro; quinta: Clóvis Rossi; domingo: Clóvis Rossi

JÁ DIZIA Calderón de la Barca (1600-1681), lá pelos idos de 1635, que “toda la vida es sueño, y los sueños, sueños son”. Bem que o Brasil está precisando de um sonho, mergulhado que anda em um pesadelo que parece não ter fim e só faz ficar mais assustador.

Pelo menos na França, seu novo presidente, Emmanuel Macron, pôs Calderón de la Barca na agenda, embora sem citá-lo:

“Não se trata somente de aplicar políticas a países ou a povos. É preciso que sejamos capazes de convencê-los, de fazê-los sonhar”, disse em entrevista coletiva a jornais europeus.

O sonho que Macron oferece à França e à Europa nem é novo, embora seja de fato sedutor: ele quer recuperar o que chama de “círculo virtuoso” capaz de defender “a liberdade e a democracia, a capacidade das pessoas e de nossas sociedades de serem autônomas, de continuar sendo livres, de garantir a justiça social e de proteger nosso planeta por meio do clima”.

Para o presidente francês, “sem esses bens comuns, não há futuro desejável nem duradouro”.

O problema com esse sonho é que todos os grupos políticos, à direita, à esquerda ou ao centro, defendem tais “bens comuns”, exceto meia dúzia de tarados.

É natural, portanto, que Macron, embora vitorioso nas três eleições que já disputou (dois turnos da presidenci­al e o pleito legislativ­o encerrado no domingo, 18), encontre dificuldad­es para vender suas ideias.

Na presidenci­al, acabou ficando com apenas 38% dos votos possíveis, se descontado­s os votos na adversária, a abstenção, brancos e nulos. No legislativ­o, pior ainda: só 43% dos eleitores se deram ao trabalho de comparecer às urnas.

É justamente entre os eleitores que mais precisam do “círculo virtuoso” que o “macronismo” obtém menos votos. Pesquisa do Instituto Ipsos mostra que a Frente Nacional (extrema-direita xenófoba) ficou com 25% dos votos, contra 17% para o partido de Macron, entre os eleitores mais pobres (com renda de até € 1.250, ou R$ 4.656,00).

Feitas essas indispensá­veis ressalvas, parece claro que o humor na Europa mudou, com a eleição de Macron e com o mau resultado dos conservado­res no pleito britânico: “O Reino Unido perdeu seu compasso, e a França tem um novo sentido de propósito”, escreve Philip Stevens, colunista do “Financial Times”, jornal que não se deixa seduzir facilmente por novidades.

Mudança de humor é tudo o que de mais precisa o Brasil. Não só está encalacrad­o na crise política, social e econômica, como a coalizão governante trata de vender reformas como panaceia universal.

Podem até ser necessária­s, mas claramente fogem dos parâmetros desenhados por Macron, o de convencer e o de fazer sonhar.

Ao contrário: a maioria do público é contra as reformas trabalhist­as e previdenci­ária, o que quer dizer que não sonha com elas. Consequênc­ia inescapáve­l: o humor da maioria da sociedade não mudará se elas forem aprovadas (tampouco mudará se não forem).

Falta, pois, pôr na roda “um novo sentido de propósito” ou um projeto de país. Um sonho, enfim, que “la vida es sueño”.

É o que Macron está tentando vender à França e à Europa, mas, no Brasil, não se vê nem o cheiro

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