Folha de S.Paulo

Pode a arte salvar o Ocidente?

- RONALDO LEMOS

DOIS DOS eventos de arte contemporâ­nea mais importante­s do planeta estão em curso: a Bienal de Veneza e a Documenta de Kassel, na Alemanha, realizada a cada cinco anos. Um ponto em comum pode ser visto em ambos: uma sensação de declínio do “Ocidente”, conjugada com a tentativa de curar o que deu errado.

A Documenta é explícita nisso. Pela primeira vez o evento se dividiu entre Alemanha e Grécia. Quem foi a Kassel em busca da exposição “principal” frustrou-se. Ela está em Atenas, cujo principal museu, por sua vez, mandou uma seleção de artistas nacionais para ocupar os espaços da Documenta original.

A troca pode ser lida como tentativa de reparação para com o país que é o berço da cultura ocidental. Se economicam­ente o país foi subjugado pela Europa, culturalme­nte é elevado à posição central (apesar das críticas que essa decisão gerou).

Em Veneza, a crise ocidental também comparece forte. Por exemplo, no devastador ataque que a jovem artista chinesa Guan Xiao faz ao ícone maior da cultura clássica: o “David” de Michelange­lo. Em uma obra de poucos minutos, ela cria um videoclipe electro-pop dizendo em inglês, com forte sotaque chinês: “Este é David, mas ele desaparece­u. Você não pode vê-lo. Não sabemos por que estamos olhando para ele”. A afirmação fica ainda mais forte diante do medo da emergência do Oriente (em especial da China), tema que permeia tanto Kassel quanto Veneza.

Se a cultura é termômetro das mudançasso­ciais,háumafigur­aausente das mostras: Donald Trump. A razão é que ele foi eleito quando as obras já tinham sido selecionad­as. No entanto, muitos dos conflitos que levaram à sua vitória (que também é sintoma da crise da “cultura ocidental”) estão lá documentad­os.

Se a política falha em tratar desses embates diretament­e, a arte ao menos tenta. Veneza o faz por meio da fuga, privilegia­ndo trabalhos escapistas ou ingênuos (há exceções), e Kassel, via o escancaram­ento incômodo de posições políticas antagônica­s e talvez inconciliá­veis.

Isso é visível no documentár­io “Two Meetings and a Funeral”, que retrata o “Movimento Não Alinhado” dos anos 1960, que reuniu países dispostos a dizer não às potências da época. Ou na obra de Marilou Schultz, que relembra a cooperação impossível entre os navajo dos EUA e a indústria de semicondut­ores, a ponto de haver coincidênc­ias entre o povo e o design de microchips. Houve também a tentativa de assimilar os navajo como mão de obra de empresas de tecnologia nos anos 1960, até que a cooperação ruiu e deu lugar a conflitos incontorná­veis.

Pode a arte curar o estado de desencanto do mundo ocidental? Desencanto com a democracia, a economia, os modos de vida e o futuro? Olhando a Bienal e a Documenta, a resposta é claramente não. No entanto, ela pode servir de território para revelar o mundo. Um lugar esquisito onde se encontram verdades, que ultimament­e andam desapareci­das como o “David” de Guan Xiao.

Não, mas ela pode servir de território para revelar o mundo, como se vê na Documenta e em Veneza

RONALDO LEMOS

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