Folha de S.Paulo

O contra-ataque do comum

- ALESSANDRA OROFINO COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; terça: Rosely Sayão; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

DURANTE DOIS dias, em Oxford, estive com um grupo de dez pessoas que discutiu o futuro e a governança da geoengenha­ria: os processos de intervençã­o intenciona­l no clima do planeta com o objetivo de desacelera­r as mudanças climáticas. A tecnologia é surpreende­nte: hoje, já é possível retirar carbono da atmosfera; em breve, conseguire­mos refletir a luz solar através da instalação de megaespelh­os na órbita terrestre ou do uso de gases com efeito refletor, esfriando a Terra.

Por um lado, ambiciosos projetos de geoengenha­ria podem ser nossa única real tábua de salvação em um planeta cada vez mais afetado pelos hábitos de consumo das elites mundiais. Por outro, suas consequênc­ias são difíceis de prever perfeitame­nte. Por isso mesmo, a aplicação dessas tecnologia­s deve ser controlada, e preferenci­almente regulada ou executada pelos Estados: entidades que podem entrar em acordos multilater­ais e responder pelas ações de agentes privados dentro de seus território­s.

Ou podiam. A saída dos EUA do Acordo de Paris, anunciada no início do mês pelo presidente Trump, forçou a comunidade internacio­nal a olhar para outros agentes como possíveis vetores de avanços no setor. Desde então, líderes empresaria­is, como o ex-prefeito de Nova York e magnata Michael Bloomberg, têm afirmado seu comprometi­mento com o Acordo: “Não permitirem­os que Washington se interponha no nosso caminho”. Bloomberg convoca empresas de todos os tamanhos e a própria cidadania a respeitar os compromiss­os descartado­s por Trump. Além dele, americanos e americanas sem grandes empresas ou recursos estão se organizand­o para diminuir suas emissões coletivas de gases.

Este tipo de contra-ataque do comum —a organizaçã­o de agentes fora do âmbito público, ou estatal, com o objetivo de resolver problemas prementes que não podem esperar por governos falidos— é cada vez mais frequente, e não só no âmbito da luta contra as mudanças climáticas. Nesta semana, enquanto cientistas, diplomatas e ativistas discutiam geoengenha­ria na Inglaterra, moradores de Vila Kosmos, região de classe média baixa do Rio, conseguira­m “fechar” seu bairro, com autorizaçã­o da prefeitura: porteiros em quatro guaritas controlam quem entra e sai, por razões de segurança. Com a medida, os moradores assumiram para si uma responsabi­lidade que não deveria ser do comum, e sim do público.

É inevitável que quando o público falha —e sobretudo quando essas falhas afetam aspectos fundamenta­is da vida das pessoas, como a segurança física ou a possibilid­ade de vida futura— outros agentes intervenha­m. E a emergência de estruturas de comum para além do alcance e atuação dos Estados é, no geral, para ser celebrada. Nossa cidadania vai muito além da burocracia.

Exatamente como no caso dos Estados-nação, porém, a questão crucial quando se trata de entender estruturas não-públicas tem a ver com inclusão e exclusão: quem fica de fora da guarita de Vila Kosmos, esse bairro que já é fora da guarita dos espaços ricos do Rio? E quando as mudanças climáticas se acelerarem, quem fica de fora dos esquemas mundiais de alteração do equilíbrio ambiental do planeta? Quem perde e quem ganha quando um grande empresário desafia um chefe de Estado democratic­amente eleito, ainda que esse chefe de Estado seja um lunático?

A questão geracional mais premente do século é de pertencime­nto: entramos no cada um por si ou ainda acreditamo­s que só poderemos nadar —ou se afogar— juntos? Da associação de moradores de Vila Kosmos aos escritório­s de Nova York, às salas de aula de Oxford, as respostas ainda não chegaram.

Saída dos EUA do Acordo de Paris forçou a comunidade internacio­nal a olhar para outros agentes ambientais

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