Gigantes da tecnologia tomam o espaço de agências em Cannes
Presença de empresas do Vale do Silício no festival simboliza avanço sobre mercado publicitário
Anunciantes revisam relação com agências ao mesmo tempo em que questionam efetividade das plataformas
No festival de publicidade de Cannes, neste ano, até o carrossel das crianças sofreu com a concorrência das grandes empresas de tecnologia.
A área diante da Croisette, a praia dourada que conquistou fama com a ajuda de décadas de glamour cinematográfico, costumava ser dominada pelos nomes e logotipos de poderosas redes de agências de publicidade como os grupos WPP e Publicis.
Mas, em um sinal das mudanças que vêm acontecendo no setor, agora são nomes do Vale do Silício que dominam o panorama no festival Cannes Lions. Facebook, YouTube, Twitter e Pinterest criaram clubes de praia hipsters nos quais executivos, jornalistas e profissionais de marketing podiam conversar sobre negócios ou simplesmente degustar um bom café, assistindo aos jogos de vôlei de praia.
O prêmio para o posicionamento mais audacioso cabe à plataforma de mensagens Snapchat —que realizou uma bem-sucedida oferta pública inicial de US$ 20 bilhões em ações, em março. A companhia montou uma gigantesca roda-gigante amarela ao lado do Palais des Festivals, para oferecer passeios grátis aos turistas e participantes.
“É uma catástrofe”, diz Corinne D’Harcour, que opera o Grand Carrousel de Cannes —a atração infantil logo ao lado— há 13 anos. “Eles também estão distribuindo pirulitos”, acrescenta, fazendo um sinal de negativo com o polegar e apontando para duas crianças que passavam carregando pirulitos com o logotipo do Snapchat.
O simbolismo do festival, que se encerrou no sábado (24), expõe uma tendência inexorável que está reordenando o setor publicitário. Ainda que o setor como um todo tenha se beneficiado do crescimento na publicidade digital, as agências começam a sentir a pressão, agora que as gigantes de tecnologia estão se tornando protagonistas cada vez mais poderosas do mercado.
“Em 2010, você não veria a marca do Google e a do Facebook aqui diante da praia”, disse Duncan Painter, presidente-executivo da Ascential, que organiza o festival.
“O espaço era todo ocupado pelas grandes agências.”
Ou, como disse um executivo de uma companhia de TV britânica, “Cannes se tornou mais um evento de tecnologia. O clima agora é do tipo ‘vem cá tomar um smoothie, enquanto nós arruinamos seu negócio’”. AMEAÇAS Mas, mesmo que a sensação seja que o balanço de poder está mudando no setor, as empresas de tecnologia também enfrentam ameaças a seus modelos publicitários. Grandes clientes criticam abertamente a maneira pelas quais elas calculam a efetividade dos anúncios veiculados em suas plataformas. E elas estão sob ataque, além disso, pela difusão de notícias falsas e de retórica do ódio.
Se a transição para a publicidade digital deve continuar, os grupos do Vale do Silício terão de encontrar respostas para essas questões. Por enquanto, porém, são as empresas tradicionais de mídia que sentem o impacto mais forte do desordenamento digital.
Pela primeira vez desde que a crise financeira lançou o setor publicitário a uma recessão, em 2009, as quatro grandes companhias de publicidade —WPP, Publicis, Omnicom e Interpublic— mostram estagnação.
A Publicis, onde Maurice Levy acaba de ser substituído por Arthur Sadoun depois de 30 anos como presidenteexecutivo, registra a pior queda, com 1,2% de declínio em suas receitas mundiais no primeiro trimestre de 2017.
“O ambiente está complicado”, afirma Sir Martin Sorrell, presidente-executivo do WPP, o maior grupo publicitário do planeta.
A consultoria de mídia Enders afirmou em relatório que “o setor publicitário continuará a passar por mudanças profundas. O investimento publicitário geral continua a crescer mais que o consumo. Mas... os sinais vitais do mercado são alarmantes”. REVISÃO Os dois grupos empresariais que mais gastam com publicidade —os conglomerados de bens de consumo Unilever e Procter & Gamble (P&G)— estão revisando seus gastos e seu relacionamento com agências.
A Unilever, que controla marcas como os sorvetes Ben
CORINNE D’HARCOUR
que opera o Grand Carrousel de Cannes, ao criticar a instalação de roda-gigante pelo Snapchat
“
É uma catástrofe. Eles também estão distribuindo pirulitos
DUNCAN PAINTER
presidente da organizadora do festival
Em 2010, você não veria a marca do Google e a do Facebook aqui diante da praia
& Jerry e os sabonetes Dove, recentemente anunciou que reduziria à metade o quadro de 3.000 agências que a atendem em todo o mundo e que veicularia um terço de anúncios a menos.
Ao mesmo tempo, a P&G, dona de marcas como Gillette e Pampers, anunciou que pretende cortar os custos de marketing em US$ 2 bilhões nos próximos cinco anos.
Com as grandes agências perdendo terreno para os gigantes da tecnologia, Marc Pritchard, vice-presidente mundial de marcas da P&G, responsável por alocar orçamento publicitário anual de mais de US$ 8 bilhões, diz que as agências têm de fazer mais para ajudar seus clientes.
“Gastamos US$ 600 bilhões ao ano em publicidade, mas continuamos a registrar crescimento anêmico, e com isso o que o setor publicitário precisa é descobrir o que promove o crescimento.” OBSCURA Mas Pritchard também está na vanguarda de outra tendência importante: a crescente pressão exercida sobre as plataformas de tecnologia quanto ao seu sistema de mensuração de anúncios e quanto ao tipo de conteúdo que elas ocasionalmente permitem.
Em um importante discurso a executivos publicitários, em janeiro na Flórida, ele descreveu a cadeia de suprimento da mídia como “obscura, na melhor das hipóteses, e fraudulenta, na pior”.
Passados seis meses, Pritchard se diz encorajado pela resposta das empresas de tecnologia e das agências de publicidade, mas acrescenta que é preciso fazer mais.
“Acho que as coisas mudaram. Muita atenção vinha sendo dedicada à mídia digital e à tecnologia, que oferecem muito de empolgante, mas, olhando por baixo do capô, percebemos que nem tudo era tão bom quanto nos diziam”, disse Pritchard. PAULO MIGLIACCI