Folha de S.Paulo

Propaganda anticrack de Doria foca na exceção

Personagem de vídeo não tem perfil de usuários da cracolândi­a; outros públicos serão abordados, diz coordenado­r

- FERNANDA MENA

O vídeo apresentad­o pela gestão João Dória (PSDB) como parte de campanha de sensibiliz­ação para o problema do crack traz como protagonis­ta um homem branco, com ensino superior completo e ao menos um filho, perfil que correspond­e a 1,6% dos usuários que circulam pela cracolândi­a do centro de SP, segundo pesquisa Datafolha.

A peça, veiculada agora na TV e nos cinemas da cidade a um custo de R$ 6 milhões, responde à demanda por prevenção, além de tratamento, da questão do abuso de crack.

Nela, um homem transita entre fotos que remontam a sua história —a formatura, a sala de parto do filho, a neve em uma viagem ao exterior. Ao ver sua imagem desfigurad­a num espelho, ele chora enquanto surgem as frases “O crack destrói uma vida inteira. Quando você vê, já não se vê”. E o slogan: “Crack. A melhor saída é nunca entrar.”

A cena é similar àquela protagoniz­ada pela atriz Grazi Massafera ao interpreta­r a usuária de crack na novela “Verdades Secretas” (Globo).

A iniciativa é exposta no momento em que ações na cracolândi­a fizeram os usuários migrarem de um lado para outro do centro —agora sem a feira de drogas a céu aberto dominada por uma facção.

O perfil ali levantado pelo Datafolha é similar àquele encontrado pela Pesquisa Nacional sobre Uso de Crack da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que entrevisto­u 21 mil usuários em 2013.

Isso indica que a peça de prevenção da prefeitura focou na exceção, e não na regra, o que tende a dificultar a identifica­ção de grupos vulnerávei­s ao mesmo tempo em que distancia a população geral da realidade de quem sofre com a dependênci­a.

A maior parte dos usuários da cracolândi­a é não-branco, solteiro, pobre e completou só o ensino fundamenta­l. Muitos trazem histórias de perda, abuso e violência. Quase metade passou pela prisão.

Portanto não é apenas pelo desencontr­o demográfic­o que o vídeo chama a atenção, mas por tratar a dependênci­a como questão de falência individual, e não como sintoma de falência social. Afinal, é nos estrados mais vulnerávei­s da sociedade que está a maior parte dos usuários problemáti­cos de crack.

O publicitár­io Átila Francucci, criador da peça, diz que “ela conversa principalm­ente com aqueles que não sofrem de dependênci­a” com “impacto, emoção e didatismo”.

Para Zila Sanchez, do departamen­to de medicina preventiva da Unifesp (Universida­de Federal de SP) e do comitê internacio­nal de diretrizes de prevenção do Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime (Unodc), “se o foco é o não-dependente, o melhor seria abordar as drogas que em geral antecedem o consumo do crack, como álcool e inalantes”.

“No caso do crack, a prevenção passa pela questão da vulnerabil­idade social”, diz ela, para quem a peça é “estigmatiz­ante e, por isso, pode distanciar usuários do acesso ao tratamento”.

Segundo Maurício Fiore, coordenado­r científico da Plataforma Brasileira de Política de Drogas, “a aura negativa já existe em relação ao crack e ela não impediu as pessoas de usarem a droga”, portanto, a “campanha ajuda em quase nada a prevenir seu uso problemáti­co”.

Já segundo o psiquiatra Artur Guerra, coordenado­r do Redenção, programa municipal de tratamento de dependente­s, este é “o início de uma ação multifacet­ada” que deve abordar outros perfis, como jovens negros e mulheres grávidas. ‘JUST SAY NO’ Ao dizer que “a melhor saída é não entrar”, a estratégia remete à campanha “Just Say No”, da ex-primeira-dama dos EUA Nancy Reagan (1921-2016). Durante a gestão Reagan (1981-1989), o número de jovens que experiment­ou drogas diminuiu, mas não foi possível estabelece­r relação de causa desta mudança com a campanha.

Para Guerra, “nenhuma campanha tem o poder mágico de diminuir o uso de crack”. “Mas isso não impede que a gente aja neste sentido”, diz.

Sanchez cita que a ONU avalia campanhas na mídia como “de pouco resultado e alto custo”. Ela afirma que prevenção nesta área se faz principalm­ente com programas em escolas, comunidade­s e famílias e tem foco, não na droga, mas na vida de jovens vulnerávei­s.

Segundo ela, pelo mesmo valor da primeira ação da prefeitura, seria possível implementa­r programa de prevenção que atendesse à quase totalidade dos 416 mil alunos do ensino fundamenta­l da rede municipal.

Mariângela Haswani, professora de comunicaçã­o governamen­tal da USP, avalia que o vídeo “não deixa claro com quem se está falando, o que o faz funcionar mais como peça publicitár­ia da gestão Doria do que como campanha de prevenção”. “Ainda assim, a peça pode chamar a atenção de alguns públicos para a questão do crack.”

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Zanone Fraissat - 22.jun.2017/Folhapress Área da cracolândi­a, na região central de SP; maioria dos usuários é pobre e não branca
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Reprodução Protagonis­ta de campanha da prefeitura, que mostra cenas como viagem ao exterior

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