Folha de S.Paulo

No Rio, fisioterap­euta cuida grátis de sequelas da vida no Alemão

- LUIZA FRANCO

Na rotina de tiroteios no Complexo do Alemão, na zona norte do Rio, não são apenas os baleados que saem feridos. É com as sequelas indiretas da violência e da falta de serviços públicos que lida a fisioterap­euta Mônica Cirne. Ela atende pacientes de graça em uma clínica perto do conjunto de favelas.

Não saber se você vai chegar inteiro em casa, ter que sair correndo ou se esconder de repente se um confronto estourar são condições do dia a dia de quem mora lá.

A instalação da UPP (Unidade de Polícia Pacificado­ra), em 2012, não foi acompanhad­a por avanços suficiente­s nos serviços de saúde, dizem moradores, nem trouxe segurança para o local, que vive seu pior momento em anos: tem uma média de um tiroteio por dia e meio em 2017, segundo dados da ONG Anistia Internacio­nal.

Isso tudo causa estresse, aumenta a pressão, provoca problemas neurológic­os, diz Cirne, que tem pacientes com sequelas de projétil de arma, de derrames, de câncer, de paralisia cerebral.

“Eu fico com o que sobra disso tudo. A comunidade é toda doente”, diz ela, que não quer ficar conhecida como a doutora da bala perdida. “Quando as pessoas vêm aqui, acham que eu só atendo gente atingida por tiro, mas tem muitas outras consequênc­ias de se viver em um lugar assim: o estresse, a droga, a falta de serviços básicos.”

São casos como os de Hemerson Nogueira, 16, que aos 14 caiu na quadra enquanto jogava futebol com os amigos: estava tendo um AVC; Luciene Silva, 41, que também teve um derrame, agravado pelo fato de que, no dia em que passou mal, acontecia um tiroteio que atrasou o socorro por uma ambulância. CONSELHO Cirne começou a atender de graça os moradores do Alemão em 2007, após um toque do padre da igreja católica que frequentav­a. “Ele me disse, depois que eu ajudei uma família que conheci por acaso, no ônibus: ‘veja o que mais você pode fazer’”, conta.

Passou então a atender em um quartinho na própria igreja. “Quando comecei, fiquei surpresa de ver como era grande a demanda. Eram filas inimagináv­eis”, afirma.

Aos poucos, a fisioterap­euta reuniu apoio e doações o bastante para reformar sua casa e passou a atender lá, às terças e sextas, durante a tarde.

A secretária, o faz-tudo e a senhora que cuida da biblioteca são ex-pacientes de Cirne. Todos são voluntário­s, assim como outra fisioterap­euta que a ajuda.

Cirne mantém uma salinha para atender crianças, mas ainda não tem recursos suficiente­s para fazê-lo. Diz que, caso tivesse apoio mensal de R$ 25 mil, a casa funcionari­a a todo vapor.

“Quero ver outras crianças, como o Hemerson, andando tranquilam­ente pela favela onde nasceram”, brinca, em referência ao “Rap da Felicidade”, dos funkeiros Cidinho e Doca, cujo refrão é “Eu só quero é ser feliz/ Andar tranquilam­ente na favela onde eu nasci”. O “tranquilam­ente” no caso não depende dela. Mas o “andando”, talvez, sim.

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Clínica perto do Complexo do Alemão onde a fisioterap­euta Mônica Cirne (à dir.) faz atendiment­os gratuitos a moradores; entre pacientes, há até garoto que teve AVC aos 14 anos

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