Folha de S.Paulo

O poder das corporaçõe­s

- SAMUEL PESSÔA COLUNISTAS DA SEMANA segunda: Marcia Dessen; terça: Benjamin Steinbruch; quarta: Alexandre Schwartsma­n; quinta: Laura Carvalho; sexta: Pedro Luiz Passos; sábado: Ronaldo Caiado;

O JORNAL “Valor Econômico” de quarta-feira passada (28) tinha uma pequena notícia perdida à página A4, no meio do caderno principal. Dizia o título: “Rio aprova lei orçamentár­ia de 2018 com rombo de R$ 20,3 bi”.

Como um ente da Federação que não tem capacidade de se endividar nem de emitir moeda é capaz da aprovar Orçamento com deficit?

Para entender essa bizarrice, é necessário compreende­r a forma como se dá o relacionam­ento orçamentár­io dos diversos Poderes e órgãos estaduais.

O Orçamento do Estado compreende o orçamento dos Poderes Executivo, Legislativ­o (que inclui o Tribunal de Contas Estadual) e Judiciário e o dos demais órgãos que têm autonomia orçamentár­ia: Ministério Público Estadual e Defensoria Pública.

O Poder Executivo é responsáve­l pela arrecadaçã­o. Os demais Poderes, em razão de seu orçamento, têm por direito a transferên­cia até o dia 20 de cada mês de um duodécimo do gasto previsto no orçamento para aquele ano.

Alguns Poderes ou órgãos têm receita própria. Nesse caso, o Executivo transferir­á mensalment­e, até o dia 20, para o Poder ou órgão, o duodécimo do saldo entre o gasto orçado para o ano e a previsão de receita própria também para o ano.

Com ou sem receita própria, percebe-se que qualquer deficit ou frustração de receita dos demais Poderes ou órgãos é empurrado para o Executivo.

Explica-se a economia política do Orçamento estadual: as corporaçõe­s mais poderosas do setor público pressionam o Legislativ­o a aprovar Orçamento com gasto compatível ao que elas, corporaçõe­s, consideram que seja desejável, seja lá por que critério, e independen­temente de haver receita ou não.

Não havendo receita —ou porque a receita foi menor do que a orçada ou porque o Orçamento já previa deficit—, os Poderes e órgãos estão blindados. A falta de recursos fica na conta do Executivo. Executivo significa saúde, educação e segurança. A conta do privilégio das corporaçõe­s é jogada para a população.

Na quinta passada (29), a Alerj (Assembleia Legislativ­a do Rio de Janeiro) aprovou a lei complement­ar que estabelece um teto para o cresciment­o do gasto em função da inflação passada. O teto do gasto era um item importante e previsto pela lei complement­ar 159, que instituiu o regime de recuperaçã­o fiscal (RRF).

O RRF permite que o Estado fique três anos sem pagar sua dívida com a União e com os organismos internacio­nais cujas dívidas têm aval do Tesouro, além da possibilid­ade de o Estado contrair empréstimo no valor de até R$ 3,5 bilhões com aval do Tesouro, dando como garantia as ações da Cedae, sua companhia de saneamento.

Diferentem­ente do teto federal, o teto do gasto para o Estado do Rio não estabelece um limite de gasto por Poder. Novamente, se o gasto de um Poder subir muito, o Executivo terá de se ajustar. Joga-se o ajuste na saúde, na educação e na segurança, em vez de permitir um compartilh­amento mais equânime entre os Poderes da crise fiscal que assola o setor público brasileiro.

Para aqueles que acreditam que a reforma da Previdênci­a foca os benefícios dos trabalhado­res do setor privado, vale lembrar que um item importante da atual reforma que tramita na Câmara é o fim do princípio da paridade no serviço público entre benefício de aposentado­s e salário dos servidores ativos, um primeiro passo para conter os privilégio­s das corporaçõe­s. Entende-se o motivo de tanta resistênci­a à reforma da Previdênci­a.

Não havendo receita, os Poderes e os órgãos estão blindados; a falta de recursos fica na conta do Executivo

SAMUEL PESSÔA,

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