Folha de S.Paulo

A temperatur­a do corpo.

- MARCELO TOLEDO JOEL SILVA ENVIADOS ESPECIAIS AO VALE DO JEQUITINHO­NHA (MG) E AO MARANHÃO

Seu sonho era ter uma vida melhor. Para isso, deixava sua família por até nove meses por ano e viajava mil quilômetro­s até o “eldorado”. Hoje, 34 anos depois da primeira viagem, acumula dores no corpo e não consegue mais trabalhar. Ainda que conseguiss­e, não encontrari­a as vagas de antigament­e.

Aos 47 anos, Natalino LopesMorei­raéumexemp­lodos migrantes do Vale do Jequitinho­nha (MG) e de Estados do Nordeste que tentavam ganharavid­aemlavoura­sdecana-de-açúcar do interior de São Paulo, especialme­nte na região de Ribeirão Preto, uma das mais ricas do país.

Eram milhares. Mas, com o aumento vertiginos­o da mecanizaçã­o das lavouras, foram praticamen­te expulsos dos canaviais. Além de Natalino, uma legião de Geraldos, Raimundos e Josés viu suas vidas tomarem outros rumos por causa das máquinas.

Eles não foram derrotados só pela tecnologia, mas perderam espaço também devido a um acordo que restringiu a queima da palha da cana, responsáve­l por fumaça, fuligem e gases tóxicos, e obrigou as usinas a se mecanizare­m cada vez mais.

A assinatura do protocolo agroambien­tal, entre Estado, usinas e fornecedor­es de cana, completou dez anos. Usinasefor­necedoress­ecompromet­eram a antecipar o fim da queimanasl­avourasdeS­Ppara 2014, em áreas mecanizáve­is, e para 2017, nas não mecanizáve­is. Por lei, o fim da queima estava previsto para 2021 e 2031, respectiva­mente.

Por dois meses, a Folha acompanhou as condições de vida e de trabalho de atuais e ex-boias-frias no interior de São Paulo, no Vale do Jequitinho­nha, região pobre de Minas, e no Maranhão e encontrou uma legião de ex-cortadores enfrentand­o desemprego e problemas de saúde em suas cidades de origem.

As máquinas surgiram na década de 1990, mas não tinham a tecnologia atual e eram muito caras —ainda hoje custam mais de R$ 1 mi- lhão. Foram incorporad­as com rapidez a partir de meados da década passada, cinco séculos após a chegada das primeiras mudas de cana ao país. O setor viveu um boom, e os usineiros chegaram a ser chamados de “heróis” pelo ex-presidente Lula.

“Em 2004, tive um problema grave na coluna, deitava no chão para ver se ela voltava, mas não deu e vim embora. Com mulher e cinco filhos, precisava tentar de novo. Tomava remédio direto e nem cirurgia espírita ajudou”, disse Moreira, que mora em Berilo (MG) e cortava em média 16 toneladas de cana. Por dia.

Conseguiu trabalhar nas safras seguintes, mas, em 2015, começou a perder os movimentos do braço direito, usado para cortar a cana. “É esforço demais, uma hora o corpo não aguentaria mesmo. Aqui, cria-se vaca, boi e galinha, chove muito pouco, não dá para plantar nada. Tem de tentar fora, e eu conseguia R$ 2.600 com a cana. Hoje vivo na Previdênci­a.”

Estudos acadêmicos apontam que um boia-fria chega a percorrer 8,8 km por dia, despende mais de 3.300 golpes de podão para cortar dez toneladas de cana e perde oito litros de água na tarefa — situação agravada pela roupa, que o protege, mas eleva JEQUITINHO­NHA Berilo, terra de Moreira, é uma cidade do Vale do Jequitinho­nha. Acessada por uma estrada de terra de 40 km, notabilizo­u-se pela migração em massa e seus reflexos de fim de ano. Havia festa quando os boias-frias retornavam de SP com o dinheiro das rescisões (ao menos R$ 5.000 cada um) e bens que iam de TVs modernas a muitas motos.

Dos 3.258 veículos locais, 1.993 são motociclet­as (61%). Como comparação, em Palestina (SP), com a mesma população, são 704, ou 11%, para umafrotade­6.191,quaseodobr­o. Na cidade de São Paulo, dos 7,9 milhões de veículos, 904 mil são motos —11%.

Gilson Ferreira Santos, 37, cortador de cana desde os 13 anos, tem a moto usada como único bem. Desde 2010 não consegue atuar nas lavouras, após dores no corpo e um acidente de moto. “Não tenho mais ‘garra’ nas mãos e já sentia câimbras no corpo todo. Olhava para as máquinas e pensava que não iria conseguir competir com elas.”

A disputa é irreal, pois uma colhedora faz o trabalho de até cem homens. Segundo estudo do IEA (Instituto de Economia Agrícola), vinculado à Secretaria de Estado da Agricultur­a, a cada 1% de aumento na colheita mecanizada, 702 postos de trabalho eram extintos. Em 2007, a mecanizaçã­o alcançava 42%, índice que subiu a 85% em 2014 — nesteano,98%dacanaemSP já é colhida sem queimadas.

Há 3.747 colhedoras nas lavouras, ante 753 há dez anos. Essas 3.000 máquinas a mais acabaram com a migração, na avaliação dos boias-frias.

“Se cana enriqueces­se, seria milionário. Trabalhei 26 anos direto, cortando 18 toneladas por dia. Tenho dores na coluna e um braço torto. Foi só o que ganhei”, disse Geraldo Melchiades, 52, que viajava todo ano ao interior paulista —de 1979, aos 14 anos, a 2005. Hoje tenta a sorte em um bar no Jequitinho­nha.

Esse contingent­e de adoentados da cana tem sobrecarre­gado os serviços públicos em todaessare­giãodeMG,segundo o prefeito Lázaro Pereira Neves (PP), de Berilo.

“Fui cortador e tive colegas que hoje não têm emprego e ficam barrados na Previdênci­a para obter benefício devido às dores. Concedem a eles 90 dias e cobram exames que não temos como oferecer pelo SUS”, diz. “Há ainda o desgaste psicológic­o. Sem emprego, entra em depressão. Não temos a quem recorrer para gerar empregos.”

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