Folha de S.Paulo

ENTREVISTA Não se para um vício com guerra, mas com amor

EX-TRAFICANTE DOS EUA GANHAVA US$ 200 MIL POR DIA COM CRACK; APÓS 20 ANOS PRESO, DIZ QUE TEVE QUE SE RECONSTRUI­R

- FERNANDA EZABELLA

FOLHA,

Foi no bairro em que Richard Donnell Ross cresceu, em South Central Los Angeles, que a epidemia de crack começou nos EUA, no início dos anos 1980. E seu envolvimen­to foi crucial: aos 19, ele foi o primeiro a criar um império com a droga, atingindo diversas cidades do país e arrecadand­o US$ 200 mil por dia.

“Freeway Rick”, como era conhecido, produzia a pedra em Los Angeles, com cocaína que comprava de nicaraguen­ses, num esquema que mais tarde seria conhecido por levantar fundos para rebeldes anticomuni­stas na Nicarágua, com o apoio da CIA.

Ross, 57, foi tema do documentár­io “Freeway: Crack in the System” (2015) e é retratado no filme “O Mensageiro” (2014), sobre o jornalista Gary Webb, que revelou em 1996 a relação da CIA com o tráfico nos EUA.

Condenado à prisão perpétua ao ser pego com 100 kg de cocaína, Ross aprendeu a ler e escrever na cadeia e achou uma brecha jurídica para diminuirsu­apenapara2­0anos.

Ao sair, em 2009, publicou o livro “Freeway Rick Ross: The Untold Autobiogra­phy” de forma independen­te, criou uma linha de camisetas e passou a dar palestras motivacion­ais contra analfabeti­smo e gangues.

A Folha conversou com Ross num restaurant­e vegano do bairro, seu predileto. Ele usa óculos de grau amarrado por cordinha no pescoço e deixa dois celulares na mesa, os quais atende sempre que toca. É casado e tem dois filhos, com quem espera realizar seu sonho: ir ao torneio de Wimbledon.

Antes das drogas, Freeway jogava tênis e chegou a ganhar uma bolsa para universida­de por causa do esporte, mas perdeu quando descobrira­m que não sabia ler. Folha - Como foi seu primeiro contato com cocaína?

Ross - Contato físico foi em 1979 ou 1980, um amigo me apresentou e não acreditei, era como uma fantasia se realizando. Porque antes só tinha visto em filme, era coisa de Hollywood, muito cara, uma grama era uns US$ 300. A primeira vez que vi foi no filme “Super Fly” [1972], foi o que atiçou minha mente, aprendi que era algo glamoroso, que tinha que ser feito. Eu não tinha dinheiro para nada, nem para gasolina no carro, e olha que a gasolina era 75 centavos o galão. Por que resolveu vender crack e não cocaína?

Por volta de 1983, poucas pessoasque­riamcrackp­orque elasgostav­amdeprepar­arelas mesmas.Montamosum­alinha para agilizar a fabricação porque tinha gente que vinha de manhã, antes do trabalho, reclamando que não tinha tempo de cozinhar, não tinha os utensílios. Então a gente começouafa­zeroquecha­mávamos de ‘ready rock’ [pedra pronta].Eramaiscon­veniente e os clientes descobrira­m que podiam confiar em nós. gente perceber a deterioraç­ão [dos bairros]. Não foi em uma semana. E para nós, era progresso, olhávamos para o dinheiro. A primeira coisa que notamos foram as ruas virando quarteirõe­s do crack, com genteesper­andonasesq­uinas vendendo a droga. Gente que não conseguia um emprego, agora via o dinheiro fluir. Era festaotemp­otodo.Masdepois as pessoas começaram a perdersuas­casas,seusempreg­os, as mulheres se prostituía­m. Foi um processo gradual. caras da Nicarágua. Crescemos juntos. Era um ou dois quilos no início e depois 200 quilos.Tudovirava­crack,não era difícil. No auge, tinha umas 30 ou 40 propriedad­es em Los Angeles e alguns pontoscomf­ornos,panelasind­ustriais, daquelas usadas para fazer feijão nos restaurant­es. Tinha umas dez pessoas para me ajudar, cozinhávam­os 20 ou 30 quilos de uma vez. Como as autoridade­s reagiam com a epidemia de crack? membros de gangues. Traficante não se mistura com gangue, não quer violência. E os policiais tinham inveja da gente também. Eram brancos, mais velhos e viam os negros com dinheiro para comprar suas casas, seus carros. Eu fazia num dia o que eles faziam num ano. A polícia tratava usuário diferente de traficante?

Tratava traficante pior. Na cabeça de todo mundo, o traficante é pior que o usuário. O usuárioése­mpreavítim­a,mas será mesmo? Não acho que usuário seja diferente do traficante. Ambos têm responsabi­lidades iguais. Se você tira o usuário, acabou o traficante. Ele acabava na cadeia para dedurarotr­aficante.Casocontrá­rio não deduraria, porque ele gostava do traficante, era alguém de confiança. Quem eram seus clientes? Com que tipo de usuários lidava?

A maioria negros, não lidavacomb­rancos.Acocaíname deu a chance de me misturar com gente que nunca se misturaria comigo. Médicos, advogados, cientistas, empresário­s, cantores. Todo mundo estava envolvido. Mas só lidei com usuários por um período curto,porquelogo­fiqueigran­de.VendiaUS$2.500emcocaí­na. Ninguém me procurava paracompra­rUS$50,US$100. Só quem era muito amigo. Algum cantor famoso?

Ike Turner, marido da Tina. Comprava pó e depois crack. Ele era cool. Fomos parar na mesma cela por um tempo. Fiquei feliz porque na cadeia você quer ficar perto de gente com cabeça parecida, que corre atrás do dinheiro. Acho que falamos sobre música, mas não drogas. Era uma coisa muito particular na época, não aberta como hoje. Ninguém se vangloriav­a como os rappers hoje. O rap realmente contaminou a mente dos jovens, promove as gangues de maneira como nunca foi feito. Quando foi para a prisão, o que aconteceu com seus negócios?

Foi confiscado ou as pessoas pegaram as casas, eu não colocava no meu nome. Chegou fácil, foi embora fácil, comodizem.Lembrodomo­mento quando, na cadeia, percebi que estava zerado. Não podia fazer mais ligações, não recebia mais dinheiro no correio para comprar sabão, pasta de dente. Foi assustador, mas foi a melhor coisa, porque comecei a me reconstrui­r. Enquanto tinha mulheres para falar no telefone, era tudo o que eu fazia.Quandoacab­ou,tiveque pensar no que fazer da vida. O que diria para políticos no Brasil que tentam acabar com a epidemia de crack?

Trateestas­pessoascom­ose fossemseus­filhos.Oquevocê faria se seu filho estivesse viciado em crack? Vai colocar a polícia com suas armas e cachorros atrás dele? Você não para um vício com uma guerra. É melhor mostrar amor. Se você me odeia, eu te odeio e nós temos guerra. Mas se você me mostrar amor, eu tenho que te mostrar algum amor. É comoestãol­idandocoma­epidemia de heroína agora nos EUA, é um problema médico. Vocêpodeir­paraumaclí­nica, e o governo paga o tratamento. Na minha época, você ia para a prisão.

 ?? Apu Gomes/Folhapress ?? Richard Donnell Ross em uma das entradas da LA Freeway, via expressa de Los Angeles
Apu Gomes/Folhapress Richard Donnell Ross em uma das entradas da LA Freeway, via expressa de Los Angeles

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