Folha de S.Paulo

TOLICES BRILHANTES

- SALVADOR NOGUEIRA

FOLHA

Ideias científica­s revolucion­árias carregam sempre consigo uma grande dose de risco. Afinal, se são revolucion­árias, ninguém as teve antes. Se ninguém as teve, ninguém as testou. E se ninguém as testou, há boa chance de que estejam erradas.

Por isso admiramos os cientistas que promoveram saltos no modo de entendermo­s o mundo. Quando eles acertam em cheio em grandes alvos, tendemos a desprezar seus erros. Cria-se o mito de que grandes mentes não cometem enganos.

Para desmanchar essa impressão, o astrofísic­o israeloame­ricano Mario Livio escreveu o livro recém-lançado no Brasil “Tolices Brilhantes”, que aborda grandes erros de grandes cientistas.

Conhecido por seu trabalho de décadas no Instituto de Ciência do Telescópio Espacial (STScI), em Baltimore (EUA), Livio coleciona em seu livro uma lista de exemplos de respeito: Charles Darwin, lorde Kelvin, Linus Pauling, Fred Hoyle e Albert Einstein. Todos tiveram um casca de banana para chamar de sua.

“É reconforta­nte para o restante de nós saber que até as maiores mentes cometem erros sérios”, disse Livio à Folha, mencionand­o uma das razões para ter escolhido este tema para o livro.

Ele admite, porém, que há uma motivação mais profunda. “O progresso na ciência é descrito como se fosse um caminhodir­eto,umamarchap­ara a verdade, de A até B. Qualquer um que já tenha se engajado nesses empreendim­entos sabe que nada poderia estar mais longe da verdade.”

Ao enfatizar que, mesmo para os mais bem-sucedidos pesquisado­res, esse caminho é tortuoso, Livio espera levar ao público uma visão mais madura de como o edifício da ciência é construído.

“Ela progride em um caminho de zigue-zague”, diz. “Nós temos muitos falsos inícios e muitos becos sem saída. Em muitas ocasiões você precisa retornar ao ponto de partida e assim por diante.” ERROS GENIAIS O pesquisado­r enfatiza que aintençãoj­amaisfoima­nchar a imagem desses cientistas, mas, sim, mostrar o processo natural de progresso científico. “Meu livro é chamado ‘Tolices Brilhantes’. Não é ‘Tolices Toscas’”, brinca.

“Esses não são erros que as pessoas cometeram porque foram descuidada­s. Todos esses enganos foram feitos com reflexão cuidadosa sobre eles, e todos os erros que eu descrevo no livro no fim das contas levaram a avanços.”

Ao eleger seus cinco “alvos”, Livio se preocupou em não recuar demais no tempo, limitando-se a meados do século 19, e em escolher de fato grandes cientistas (“e não só cientistas OK”).

Além disso, o leitor há de perceberqu­eháumfioda­meada que conecta os escolhidos. “É a palavra ‘evolução’”, explicita o autor. “Evolução da vida na Terra, evolução da própria Terra, evolução das estrelas e evolução do Universo como um todo.”

As vedetes do livro, naturalmen­te, são Darwin e Einstein —indiscutiv­elmente os dois cientistas mais influentes dos últimos 200 anos.

Mas, para quem é menos familiariz­ado com a história da ciência, talvez os nomes de Kelvin e Hoyle soem menos familiares. De fato, esses dois, a despeito de suas realizaçõe­s notáveis, são mais lembrados por seus erros do que por seus acertos.

Em ambos os casos, Livio promove um salutar esforço de reabilitaç­ão. Embora Kelvin estivesse fundamenta­lmente errado em sua estimativa da idade da Terra, feita no final do século 19, ela foi a primeira tentativa séria, baseada em física fundamenta­l, de calcular em que época nosso planetasef­ormou.Umprimeiro­passoessen­cialparaab­rir essa discussão.

No caso de Hoyle, a situação era ainda mais grave. Sua teoria do estado estacionár­io —formulada de modo a eliminar o Big Bang e manter o Universo mais ou menos igual ao longo de toda a eternidade— era brilhante de fato.

Infelizmen­te, calhou de estar errada. E quando as evidências penderam para o lado do Big Bang, Hoyle não soube degluti-las.

“Embora [Kelvin e Hoyle] fossem realmente geniais, eles teimosamen­te continuava­m a se apegar às suas coisas que eram erros”, diz.

Ele contrapõe o caso dos dois ao de Linus Pauling, o químico que decifrou, usando apenas conhecimen­to teórico e muito pouca informação de observaçõe­s, a estrutura básica das proteínas.

Quando Pauling tentou aplicar o mesmo método para decifrar a estrutura do DNA, fracassou, dando espaço para James Watson e Francis Crick apresentar­em a estrutura correta, em 1953.

“Pauling percebeu que estava errado, reconheceu isso poucos meses depois e admitiu que o modelo de Watson e Crick era melhor”, diz Livio.

“Lorde Kelvin não aceitou até o dia de sua morte que não estava errado em nada, e Fred Hoyle continuou a acreditar em uma forma ou outra do Universo em estado estacionár­io também até o dia em que morreu.”

Com prosa agradável e grandes sacadas, Livio conduz o leitor de forma suave por biologia, geofísica, astrofísic­a e cosmologia, mostrando as interconex­ões entre os saberes científico­s e a unicidade do mecanismo que permite o progressiv­o caminhar da ciência —permeado de erros de percurso.

Fred Hoyle e lorde Kelvin

AUTOR Mario Livio EDITORA Record PREÇO R$ 52,90 (350 págs.)

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