Folha de S.Paulo

Saudade do João

- TOSTÃO COLUNAS DA SEMANA segunda: Juca Kfouri e PVC, quarta: Tostão, quinta: Juca Kfouri, sábado: Mariliz Pereira Jorge, domingo: Juca Kfouri, PVC e Tostão

JOÃO SALDANHA completari­a cem anos nesta segunda (3). Na Copa de 1990, na Itália, ele comentou partidas ao vivo pela TV e morreu em Roma, quatro dias após o fim do Mundial.

O comentaris­ta e o treinador João Saldanha não tinham o comportame­nto convencion­al de outros comentaris­tas e treinadore­s. No rádio, na TV e como colunista, João era espontâneo, polêmico, irreverent­e, falava e escrevia com conhecimen­to técnico, de uma maneira coloquial, como se estivesse na mesa de um bar. O público gostava. Hoje, como seriam recebidas suas opiniões nas redes sociais?

Certamente, João Saldanha não seria hoje um treinador moderno, estrategis­ta, fascinado por milhares de estatístic­as, pelos mapas de calor da movimentaç­ão dos jogadores em campo e por outras engenhocas. Ele era preocupado com detalhes sobre cada jogador, que iam além do jogo. Era um humanista.

Quando Saldanha assumiu a seleção, o futebol brasileiro vivia uma fase de grande pessimismo, após a eliminação na primeira fase do Mundial de 1966. João chamou os jogadores de “Feras do Saldanha”, incendiou o time e o público. Foi um momento brilhante da seleção, uma situação parecida com a fase atual, com a chegada de Tite.

Ainda não foi bem explicada a razão da saída de João Saldanha. Não foi, certamente, por alguns jogostrein­o ruins. Dizem que houve um encontro, em Brasília, entre o ditador Médici e membros da CBD, para dispensá-lo. Saldanha, com algumas João Saldanha não tinha o comportame­nto convencion­al de outros comentaris­tas e treinadore­s atitudes inesperada­s, como dizer que Pelé não enxergava bem, por causa de uma miopia, também passava a impressão de que desejava sair. Ele, comunista, parecia constrangi­do em treinar a seleção de um país que vivia uma ditadura militar.

Em um artigo, escrito no jornal “O Globo”, antes da Copa, João disse que o mais difícil não era entender sua saída, mas sim a razão pela qual tinha aceitado ser treinador da seleção. Não compreendo também por que foi contratado pela CBD. Só pode ter sido por populismo, para agradar ao torcedor. Será que os militares foram consultado­s?

João foi importante na conquista do Mundial. Além de ter recuperado a confiança do torcedor, o planejamen­to científico para a Copa foi feito por um grupo de especialis­tas, escolhidos por João Saldanha e comandados por Lamartine Pereira da Costa, oficial da Marinha que tinha tido a mesma experiênci­a com a seleção de vôlei nas Olimpíadas de 1968, na altitude do México.

Contam que o primeiro encontro entre Saldanha, Lamartine e o capitão Cláudio Coutinho, coordenado­r técnico da seleção, que, depois, se tornou treinador, foi em uma churrascar­ia, abaixo do Pão de Açúcar, no Rio de Janeiro. João, em seu jeito simples e informal, teria escrito em um guardanapo as palavrasch­ave do que foi programado. Foi uma preparação científica, inovadora, elogiada em todo o mundo.

Em um país de tanta troca de favores, de escolhas por amizades e outros interesses, Saldanha convidou militares para a comissão técnica, em razão apenas do conhecimen­to técnico. Foi um gesto de grandeza do treinador. Por outro lado, alguns acham que faltou a João, na seleção, a companhia de verdadeiro­s amigos.

Na concentraç­ão da equipe, João gostava de conversar sobre tudo. Eu aprendia com ele. Ele era inteligent­e, culto. Viajava e fantasiava. Tenho muita saudade do João.

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