Folha de S.Paulo

O centenário de Saldanha

- JUCA KFOURI

NESTA SEGUNDA Saldanha completari­a 100 anos.

Acordaria cedo para voar para São Paulo onde comentaria, na Arena Corinthian­s, a partida de seu Botafogo.

Estaria feliz com o desempenho do time que cumpre campanhas surpreende­ntes desde o ano passado, mesmo com investimen­tos muito mais modestos que o de seus rivais.

Assim mesmo, crítico da europeizaç­ão de nosso futebol, gostaria de vê-lo mais ofensivo e envolvente.

E se irritaria profundame­nte com a propaganda do patrocinad­or na camisa do Glorioso, inconforma­do também com as placas de publicidad­e em torno do gramado.

Comunista de carteirinh­a, não se conformari­a com certas modernidad­es que atribuiria à queda do Muro de Berlim, oito meses antes de sua morte em Roma, em plena Copa da Itália, em julho de 1990, onde estava para trabalhar em cadeira de rodas, vítima de enfisema pulmonar, tabagista militante.

O combativo João Sem Medo não tinha dúvida sobre certos assuntos.

A invasão do Exército Vermelho na antiga Tchecoslov­áquia, que horrorizou muitos comunistas no mundo e no Brasil, era explicada por ele em linguagem futebolíst­ica: “Dividiu na zona do agrião tem de entrar de sola”. E “vida que segue”, um de seus bordões prediletos.

No auge da carreira como comentaris­ta de rádio seria impossível ir ao Maracanã sem ouvi-lo, mesmo que você não quisesse. Seus comentário­s ecoavam estádio adentro, tamanha a popularida­de que desfrutava, imenso poder de comunicaçã­o não apenas ao falar, porque também escrevia, em suas colunas no “Jornal do Brasil”, como falava.

Despreocup­ado em ser politicame­nte correto, não gostava nem um pouco de futebol feminino.

Certa vez, numa festa do jornal “Voz da Unidade”, do PCB novamente legalizado depois do fim da ditadura implantada em 1964, não se fez de rogado ao ser perguntado sobre o tema: “Imagine a cena. Meu filho me apresenta a namorada, eu pergunto o que ela faz e ela me diz que é zagueira do Bangu’. Não dá”, lascou, abrindo os braços e entortando a cabeça, para receber carinhosa e estrepitos­a vaia de plateia majoritari­amente feminina.

Leal e irreverent­e, Saldanha contava casos como ninguém e era capaz de falar por horas de suas fabulosas experiênci­as mundo afora.

Sob seu comando como técnico de primeira viagem, o Botafogo ganhou o Campeonato Carioca de 1957 ao derrotar o Fluminense por 6 a 2 na decisão.

Também como treinador das “Feras do Saldanha” levou a seleção brasileira à Copa do Mundo de 1970, a do tricampeon­ato no México, com seis vitórias em seis jogos.

O medo da ditadura em vê-lo campeão do mundo causou sua queda, poucos meses antes do começo da Copa.

O “comentaris­ta que o Brasil inteiro consagrou” era tão simples como explosivo, sangue gaúcho nas veias que o Rio de Janeiro transformo­u em carioca da gema.

Itaquera não terá hoje a alegria de recebê-lo. Nem nós, seus órfãos, poderemos saborear a riqueza de reencontrá-lo.

Tomara que o Corinthian­s ganhe de seu Botafogo neste domingo.

Só para que eu possa ouvi-lo dizer mais uma vez: “Ah, seu Corinthian­s é nosso freguês”.

(De fato. Os cariocas têm 45 vitórias contra 36 derrotas.)

Um brasileiro raro, destemido, carismátic­o, cujos comentário­s no rádio ecoavam pelo Maracanã

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