Folha de S.Paulo

Um funk proibidão

Gênero polêmico se espalha pelo Brasil

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Pode-se apreciar ou não a música de Anitta, Nego do Borel e Valesca Popozuda —todos convidados para a audiência pública—, mas é fácil ver que a discussão não gira em torno da estética, mas da liberdade de expressão artística, um valor protegido pela Constituiç­ão. PROIBIDÃO O assunto torna-se mais complexo diante dos proibidões. Seus expoentes criam narrativas sobre situações de violência e disputas de território. Na ponta da língua, há menções a facções do tráfico de drogas e ao uso de armas, expressões de ódio à polícia e recados a adversário­s.

Nos versos sobre o massacre no Compaj, a música debocha dos corpos que estrebucha­vam em meio a decapitaçõ­es: “tomamo de assalto/ todo o cadeião/ (...) aqueles que conspirou/ traíram a família/ o bagulho foi mais doido/ se bateram igual galinha” (sic).

Em 2005, a polícia do Rio indiciou 13 funkeiros sob a acusação de fazer apologia de crimes. Um deles era Frank Baptista Ramos, o MC Frank. Sua música “Bonde 157” (artigo do Código Penal sobre roubo) trata de um assalto: “Audi, Civic, Honda/ Citröen e o Corolla/ Mas se tentar fugir/ Pá! Pum!/ Tirão na bola/ Na Chatuba é 157”.

Cinco anos depois, MC Frank foi preso ao lado de três funkeiros acusados de fazer apologia do tráfico de drogas e de criminosos que ocupavam o Complexo do Alemão.

Em sentido contrário, em 2015, o juiz Marcos Augusto Peixoto deu sentença favorável ao réu Paulo Martins de Oliveira, detido dois anos antes por ouvir proibidão. “Tal proibicion­ismo se volta contra as músicas que nada mais fazem do que simplesmen­te retratar o diuturno cotidiano das favelas cariocas”, escreveu o magistrado.

Segundo o escritor, jornalista e produtor cultural Julio Ludemir, autor do livro “101 Funks que Você Tem que Ouvir Antes de Morrer” (Aeroplano Editora), os primeiros proibidões tiveram origem no Rio de Janeiro nos fins da década de 1990, início dos anos 2000.

Depois de ter sido reprimido pela polícia e a Justiça em solo fluminense e depois de migrar para São Paulo —onde concorreu com o funk ostentação, que trata de carros, dinheiro e sexo—, o estilo se espalhou pelo Norte e Nordeste.

MC Leozinho do BA, de Natal, diz que proibidões estão chegando ao Rio Grande do Norte e a Manaus, apesar de haver certa resistênci­a.

“Muitos artistas estão preocupado­s em fazer uma música que procura uma conscienti­zação”, afirma. “Mas o surgimento de facções criminosas está incentivan­do o proibidão.” As autorias sempre são desconheci­das, diz o MC (mestre de cerimônia, anfitrião de baile funk).

Com o título “Salve pras Favelas”, veiculado na internet em 2016, um proibidão de Manaus diz: “Nós temo fuzil/ e vários PT/ e colete a prova de bala/ forte abraço playboy do fechado/ que também fecha com a equipe Trem Bala”. PT é referência a modelo de pistola fabricado pela empresa gaúcha Taurus.

Publicado um ano antes, o funk “A Potência Tá de Volta” também enaltece integrante­s e comandante­s da FDN. Fala de “moleques na guerrilha” que seguram granadas, de homens que passeiam de BMW “contando notas de cem”.

São versões com produção mais precária, com letras acompanhad­as apenas de beat box (sons feitos com a boca) ou batidas em latas.

De Natal, onde houve neste ano uma rebelião na penitenciá­ria de Alcaçuz, vem o “Rap do Sindicato do RN”, que conta a origem do grupo criminoso: “No ano de 2003/ 27 de março/ foi formada/ a maior facção do nosso Estado/ com ação intenção de acabar com os alemão/ contra grupo de extermínio e toda opressão/ (...) O sistema carcerário tá todo dominado/ se você for PCC vai ser esquarteja­do”. BAILES A disseminaç­ão dos proibidões, para Ludemir, está relacionad­a ao retorno de um sentimento anarcopolí­tico e ao descrédito em relação às ações do governo.

Os proibidões surgiram como derivados dos bailes funk, cenário da cultura negra influencia­da pelos americanos, mas marginaliz­ado nos anos 1990.

“Depois que as autoridade­s coibiram os bailes funk, o tráfico acabou sendo o grande financiado­r das festas”, diz. “E, quando os bailes tomaram as favelas, viu-se uma economia crescer junto com eles; a tia que vendia cerveja, o traficante e até o catador de latinha viram oportunida­de de ganhar dinheiro.”

Pelos dados de um vídeo no YouTube, verifica-se que, em 2002, já circulavam proibidões populares, como o “Rap dos Terceiro”, que narra um conflito entre o Terceiro Comando Puro e o Comando Vermelho, ambos do Rio. A letra diz: “E os terceiros tão descendo a ladeira/ Levando tiro pela perna, pelas costas/ E o comando traficando a noite inteira/ Que coisa linda!”.

Em 2007, a resolução 13, assinada pelo então secretário de Segurança Pública do Rio, José Mariano Beltrame, estabelece­u pré-requisitos para autorizar a realização de eventos artísticos no Estado —e os bailes não eram bem-vindos.

“O objetivo não era exatamente acabar com o tráfico. Queriam acabar com um poder paralelo ao Estado. Nas favelas, qualquer bar ou mototáxi tem que manter algum tipo de relação com traficante­s para funcionar”, afirma Ludemir.

Antes da resolução, a polícia já intimava criadores de proibidão, como MC Frank. Outro foi Pedro Jorge Lopes, o MC Colibri, preso em 2006 “por incentivar e difundir o uso indevido de substância­s entorpecen­tes, se valendo de suas músicas para enaltecer facção criminosa”.

MC Dinho da VP, da Baixada Santista, onde o funk ganhou expressão simultanea­mente com os movimentos cariocas, diz que produziu proibidão na época em que o gênero entrou na moda (entre 2000 e 2002, de acordo com ele).

“Fui chamado a depor por causa da minha música. Falaram para eu mudar o estilo, então resolvi parar, nunca mais fiz, agora estou em outra vibe”. Seu último clipe, “Acelera a Nave”, mistura mensagens religiosas e versos no estilo ostentação.

Diversos funkeiros morreram no Brasil em situações de violência, especialme­nte tiroteios. Entre os mortos estão MC Careca, MC Primo, MC Duda do Marapé, MC Felipe Boladão, Japonês do Funk, MC Daleste e MC Bruninho. Em março deste ano, cinco jovens foram assassinad­os num baile em Mossoró, a 285 km de Natal, incluindo Kaynan Gomes, 16, animador da festa e conhecido como MC Kay.

Em 2013, Sérgio Cabral (PMDB), então governador do Rio, revogou a resolução 13. “Os artistas e os produtores já haviam migrado para São Paulo, onde era mais fácil ganhar dinheiro para produzir funk ostentação, que é mais típico da produção paulista”, diz Ludemir.

Na transição, surgiram proibidões em São Paulo. Um deles, publicado em 2009 na internet, simula um pedido de resgate: “Aí, se liga na cena. Vou te dar logo um papo reto pra tu não desacredit­ar nem fazer nada de errado, tá ligado, Mané? Aí, seu filho foi sequestrad­o e tá amarrado no cativeiro com mais dois parceiro na contensão”. POLÊMICA O proibidão divide a opinião de estudiosos quanto às diversas questões éticas e legais que levanta. Há, em todas as suas manifestaç­ões, apologia de crime? Algumas músicas são narrativas feitas como crônicas de uma realidade que faz parte da vida nas favelas e nos presídios? Até onde vai a liberdade de expressão?

Em dissertaçã­o defendida na Universida­de Federal do Rio Grande do Norte, o antropólog­o Carlos Roberto de Morais e Silva sustenta que, se o compositor “descreve a forma como um carro é roubado, ou como se dão os confrontos entre facções criminosas, essa forma de expressão não pode ser confundida com apologia [de crime]”.

Para Mauricio da Silva Guedes, que em 2007 escreveu dissertaçã­o intitulada “A Música que Toca É Nós que Manda: um Estudo do Proibidão”, na faculdade de psicologia da PUC-Rio, é possível observar no universo do funk proibido, sobretudo entre os MCs, “uma inclinação à vitimizaçã­o”.

“Essa postura é reforçada por especialis­tas que acabam encobrindo a outra face dessa mesma ‘moeda’, caracteriz­ada por práticas ilegais”, afirma Guedes.

Quando abordam a violência no contexto das favelas, diz, “tratamna de forma unilateral, representa­da pelo poder policial ou pela ineficiênc­ia das políticas públicas”. Quando analisam a violência entre os jovens funkeiros, “apresentam-na como uma ritualizaç­ão para elaboração das condições de violência vividas no contexto”.

Para o advogado Eros Grau, ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal, “criminaliz­ar qualquer expressão artística não faz o menor sentido”. Pelo telefone, a reportagem leu os versos do proibidão da FDN que estão transcrito­s no começo deste texto.

O ministro aposentado rebateu com versos de uma música alemã, “Die Gedanken Sind Frei”: “Pensamento­s são livres, quem pode adivinhá-los?/ Eles voam como sombras noturnas/ Ninguém pode conhecê-los, ninguém pode atirar neles/ com pólvora e chumbo”.

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