Há ainda outra novidade da Lava Jato, mas que, a despeito de sua relevância, tem
de legalidade por outra instituição politicamente independente.
Não é por acaso, portanto, que o MPF tenha assumido a liderança na operação. O Ministério Público, com atuação controlada pelo Judiciário, é instituição estatal que possui, ao mesmo tempo e por via constitucional, os atributos institucionais enumerados, o que fortalece a legitimidade, a juridicidade e a eficácia de suas ações.
Tal afirmação não exime o MPF de erros e, portanto, de críticas. Nem, muito menos, implica contrapô-lo ao eventual exercício legítimo de competência por outros órgãos. Essa contraposição é uma falsa questão, que só interessa àqueles não comprometidos com o efetivo combate à corrupção ou simplesmente interessados em protagonismo institucional artificial.
Trata-se apenas de reconhecer que, em razão da natureza, da complexidade e da especificidade dos fatos evidenciados pela Lava Jato, somente um órgão de Estado com as características institucionais apontadas poderia estar legitimado a impulsionar o tratamento do assunto com a abrangência, a isenção e a coesão necessárias. CAPITALISTAS passado relativamente despercebida. Atenta-se pouco para seus efeitos sobre as relações privadas.
A tradução jurídico-econômica da aliança empresarial-estatal objeto da Operação Lava Jato é a organização do mercado sob a forma particular de oligopólios dependentes do Estado. Estes se organizam, tipicamente, sob a forma de cartéis cambiantes: uma dança das cadeiras em busca de projetos públicos, mas sempre entre os mesmos agentes, os quais evitam competir entre si.
Não se trata aqui da questão quanto ao tamanho do Estado. Aliás, as evidências empíricas disponíveis —ainda que imperfeitas— não confirmam, no mundo, correlação positiva entre tamanho do Estado (medido em proporção do PIB) e grau de corrupção (medido por índice de percepção) de certo país.
Trata-se, a rigor, de uma maneira específica de organizar a vida econômica, e da relação públicoprivada com respeito a atividades produtivas, cujas características peculiares incluem concentração de poder, centralização decisória, favores oficiais e dinheiro público e dos trabalhadores. Esta configuração, sim, representa hipótese plausível de facilitar captura e corrupção generalizada.
A discussão dessa agenda, ao mesmo tempo oligopolista e burocrática, não é nova. Explicitou-se ao menos desde o 2º Plano Nacional de Desenvolvimento, iniciado por Ernesto Geisel (1907-1996) na década de 1970. Não foi significativamente renovada desde então, mesmo com inovações legislativas pontuais.
Um exemplo é a inocuidade do chamado “kit compliance”, previsto na chamada Lei Anticorrupção (lei 12.846/13).
Trata-se de um conjunto de regras de conduta e sistemas de controle pelo qual as empresas que alegavam adotá-lo se comprome- tiam a criar mecanismos internos para cumprir leis e evitar desvios. A adoção do pacote atenuaria eventuais sanções impostas por violação da lei. Em muitos casos, no entanto, era, como se diz, só para inglês ver. O kit ia para a gaveta assim que elaborado. LENIÊNCIA A mudança real só veio por intermédio de instrumento inovador no Brasil: o acordo de leniência. Com ele, a força-tarefa do MPF na Lava Jato conseguiu implementar, na prática negocial, aquilo que poucos conseguiriam fazer por lei. Sujeitou algumas das maiores empresas do setor de infraestrutura brasileiro —agora expandido a outros setores, como o de proteína animal— a regime severo de práticas de integridade e de readequação de suas atividades a padrões de mercado.
O acordo de leniência celebrado pelo MPF não é para inglês ver. Além de criar obrigações rigorosas de integridade, segundo os mais altos padrões mundiais, e de, ao menos no caso da Odebrecht, instituir a figura do monitor independente (designado pela força-tarefa) encarregado de verificar seu efetivo cumprimento e adequação, estipulou consequências muito gravosas em caso de descumprimento.
Entre elas está o vencimen- to antecipado das obrigações de pagamento previstas nos acordos e, mais importante, a possibilidade de uso das informações relevadas pela empresa contra ela mesma. Soma-se a isso a perda de crédito financeiro, cuja concessão, nos mercados de hoje, depende em grande medida da confiança depositada no cumprimento do ajustado.
Ou seja, descumprimento é igual a morte empresarial imediata.
O mais relevante é que, além do interesse de evitarem a própria extinção, as chamadas empresas colaboradoras (isto é, aquelas que celebraram acordo de leniência com o MPF) passam a servir como “cães de guarda” dos mercados em que atuam. Isso porque, como estão efetivamente sujeitas a regras rigorosas, estarão em desvantagem competitiva se suas concorrentes se valerem de práticas ilícitas.
Conforme publicado nesta Folha em março, a socióloga Beatrice Edwards, estudiosa do Government Accountability Project - Truth be Told (projeto de responsabilidade governamental - a verdade deve ser dita), organização internacional que zela por informantes, veio recentemente ao Brasil e procurou enfatizar que a desconfiança em relação a quem colabora com a Justiça é mal direcionada.
A motivação pessoal ou empresarial (sobrevivência, redução de sanções, proteção contra retaliação etc.) dos colaboradores não é relevante diante do interesse público na preservação do instrumento da colaboração. CRITÉRIOS De fato, são vários os parâmetros de avaliação do interesse público em determinada colaboração empresarial.
Em relação ao conteúdo —isto é, sobretudo em relação às informações e provas—, a relevância pública será tão mais caracterizada quanto maior for a sua amplitude (por exemplo, abranger amplo espectro político-partidário), sua sensibilidade (envolver agentes políticos de alto escalão), sua densidade (referir-se não a atos isolados, mas a uma prática sistemática e arraigada, que desarticula o funcionamento da democracia), seu ineditismo (criação de linhas de investigação), sua utilidade (na alavancagem de investigações), sua profundidade e seu detalhamento (descrição não meramente retórica de fatos, mas a apresentação de detalhes e dados de corroboração robustos), entre outros.
Mas, além disso, a relevância pública de eventual acordo de leniência empresarial está diretamente ligada à interrupção imediata de atos ilícitos e à oportunidade de transformar agente privado em vetor de transformação dos mercados em que atua. É uma segunda chance, sim, mas sob condições.
Os acordos de leniência, por isso, representam muito mais do que mera confissão.
A colaboração de organizações empresariais com o MPF, especialmente aquelas que são protagonistas em seus mercados, oferece robustez probatória singular (bases de dados, transferências bancárias etc.) e a visão integrada (não apenas individual) do funcionamento de condutas ilícitas que tenham se tornado práticas arraigadas na relação público-privada, aportando elementos úteis, e muitas vezes indispensáveis, para sua descoberta e desfazimento, em prazos e condições que, diante da natureza e complexidade das condutas, não seriam possíveis de outra forma.
Trata-se de mais uma diferença em relação à Mãos Limpas, na Itália. Lá, as empresas não apareceram como agentes de transformação. Aqui, independentemente das intempéries que ainda escurecem o horizonte da Lava Jato, já se pode falar num legado empresarial: impor o capitalismo aos capitalistas.
A simples possibilidade criada demonstra a direta compatibilidade da Operação Lava Jato com a agenda de desenvolvimento econômico de longo prazo no Brasil. Ninguém imaginaria que o choque de legalidade viria por contrato.
Será que finalmente os empresários estarão sujeitos a concorrência implacável, que somente pode ser enfrentada com competência verdadeira?