Sem lei específica nem critérios consolidados, juízes ainda divergem na interpretação de discurso de ódio
Setembro de 2013: o Tribunal de Justiça de São Paulo, em votação unânime, nega pedido de censura ao curtametragem “A Inocência dos Muçulmanos”, que retrata a religião islâmica como embuste e o profeta Maomé como delinquente.
Agosto de 2016: o Tribunal Regional Federal da 2ª região ordena que o Google remova vídeos ofensivos a religiões de matriz africana. O material exibia uma série de testemunhos e sessões de exorcismo envolvendo supostos adeptos da umbanda e do candomblé.
Nas duas decisões, os juízes levaram em conta o conceito de discurso de ódio: em um, julgou-se que a crítica era legítima; no outro, que violava a dignidade humana de uma comunidade. A disparidade revela não haver um denominador comum nos tribunais para definir os limites da liberdade de expressão.
O tema é delicado no direito brasileiro, que ainda não tipificou o discurso de ódio —a lei que pune o racismo, de 1989, é a norma mais próxima de caracterizar o crime.
Foi por ela que, em 2000, o caso do editor brasileiro Siegfried Ellwanger, negacionista do Holocausto, chegou ao STF. O tribunal julgou que um discurso racista não é protegido pela liberdade de expressão.
Para o ministro do STF Luís Roberto Barroso, um critério possível para classificar o discurso de ódio é a identificação social do grupo atingido. “Se estiver lidando com um grupo que não é vulnerável, você pode até ter uma ofensa, eventualmente um crime contra a honra, mas isso não caracterizará um discurso de ódio”, afirma.
“É uma tentativa de desqualificar e excluir grupos historicamente vulneráveis do debate em igualdade de condições”, diz o ministro.
Em 2014, a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) apresentou o projeto de lei 7582/14, que define crimes de ódio e de intolerância e amplia o rol de protegidos pela lei de racismo para outros grupos-alvo, de transgêneros a moradores de rua. O texto está sob análise da Comissão de Direitos Humanos da Câmara desde setembro de 2015. PRECONCEITO Para Thiago Pierobom, promotor que coordenou o Núcleo de Enfrentamento à Discriminação do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios entre 2012 e 2016, a liberdade de expressão não pode abrigar agressões a grupos identitários.
“Meu critério [para oferecer uma denúncia] era o seguinte: não é possível admitir nenhum tipo de conduta que configure humilhação, constrangimento, ofensa a determinada pessoa”, afirma.
Pierobom atuou no caso em que o hoje procurador federal Leonardo Lício do Couto foi condenado por racismo. Em 2007, ele escreveu em um fórum virtual de concursos: “Na verdade, não sou apenas antissemita. Sou skinhead. Odeio judeus, negros e, principalmente, nordestinos”. Referiu-se também a esses grupos como “gentalha” e “escória da sociedade”.
Na sentença que o condenou a dois anos de prisão, o juiz recusou a tese da defesa de que se tratava apenas de brincadeira. “Propagar por meio de comunicação social esse tipo de ‘opinião’ configura, sim, o crime de racismo”, escreveu. Couto não foi para a prisão.
Nem sempre as decisões endossam essa restrição de opinião. Durante debate eleitoral em 2014, o então candidato à Presidência Levy Fidelix (PRTB) afirmou ser preciso “enfrentar essa minoria”, em alusão aos homossexuais.
Fidelix chegou a ser condenado em primeira instância a pagar R$ 1 milhão por danos morais. O Tribunal de Justiça de São Paulo, porém, reverteu a decisão em fevereiro deste ano, ao entender que “apesar da manifestação grotesca do candidato”, não era possível identificar “afronta específica à dignidade da pessoa humana dos integrantes do movimento LGBT” no contexto do debate televisivo.
Para Ronaldo Porto, professor de filosofia do direito da USP e da FGV (Fundação Getulio Vargas), o direito brasileiro não delimita a fronteira entre incitação à violência e a defesa de ideias.
A veiculação de preconceitos, segundo Porto, não pode ser tolhida em nome da sensibilidade alheia. “Ninguém tem o direito abstrato de não ser ofendido pelas ideias dos outros”, afirma.
“A questão não é saber se eu devo aceitar esse discurso no âmbito das ideias, mas se a pessoa tem o direito de emiti-lo e o quão errado é calar ou criminalizar quem emite ideias preconceituosas”, diz.
Se há liberdade de pensamento, por que não posso defender o que quiser?
A jurisprudência tende a restringir a liberdade de expressão quando ela entra em choque com os princípios da igualdade, da dignidade humana e da não discriminação
E a liberdade religiosa?
O entendimento predominante é que o discurso religioso é protegido pela liberdade de expressão, mesmo quando atinge outras comunidades
Posso defender ideias extremistas?
O direito brasileiro é restritivo. É vedado, por exemplo, uso e comercialização de símbolos nazifascistas. O STF já considerou que é incitação ao racismo a negação do Holocausto
Como posso ser responsabilizado por opinar?
Uma ofensa pode gerar dois tipos de responsabilidade: a civil (indenização por danos morais ou materiais) e a criminal. A lei também prevê a indenização por danos morais coletivos, quando o ofensor atinge não apenas uma pessoa mas um grupo (negros, gays, judeus, indígenas)
Posso ser preso se xingar alguém pela internet?
Sim, se for enquadrado como crime contra a honra: injúria (ofender alguém), difamação (atribuir fato ofensivo a alguém) ou calúnia (afirmar falsamente que alguém cometeu crime). Penas alternativas são a praxe
E se o xingamento for racista?
O juiz pode decidir por injúria racial (pena de um a três anos) ou prática de racismo (detenção de até cinco anos se ocorrer por meio de comunicação social, como a internet)
Qual a diferença entre injúria racial e racismo?
A injúria envolve o uso de palavras depreciativas referentes à raça ou cor com a intenção de ofender a honra da vítima. Já o de racismo implica discriminação contra um grupo. É imprescritível e inafiançável