Folha de S.Paulo

Sem lei específica nem critérios consolidad­os, juízes ainda divergem na interpreta­ção de discurso de ódio

- ANTONIO MAMMI LUÍS COSTA

Setembro de 2013: o Tribunal de Justiça de São Paulo, em votação unânime, nega pedido de censura ao curtametra­gem “A Inocência dos Muçulmanos”, que retrata a religião islâmica como embuste e o profeta Maomé como delinquent­e.

Agosto de 2016: o Tribunal Regional Federal da 2ª região ordena que o Google remova vídeos ofensivos a religiões de matriz africana. O material exibia uma série de testemunho­s e sessões de exorcismo envolvendo supostos adeptos da umbanda e do candomblé.

Nas duas decisões, os juízes levaram em conta o conceito de discurso de ódio: em um, julgou-se que a crítica era legítima; no outro, que violava a dignidade humana de uma comunidade. A disparidad­e revela não haver um denominado­r comum nos tribunais para definir os limites da liberdade de expressão.

O tema é delicado no direito brasileiro, que ainda não tipificou o discurso de ódio —a lei que pune o racismo, de 1989, é a norma mais próxima de caracteriz­ar o crime.

Foi por ela que, em 2000, o caso do editor brasileiro Siegfried Ellwanger, negacionis­ta do Holocausto, chegou ao STF. O tribunal julgou que um discurso racista não é protegido pela liberdade de expressão.

Para o ministro do STF Luís Roberto Barroso, um critério possível para classifica­r o discurso de ódio é a identifica­ção social do grupo atingido. “Se estiver lidando com um grupo que não é vulnerável, você pode até ter uma ofensa, eventualme­nte um crime contra a honra, mas isso não caracteriz­ará um discurso de ódio”, afirma.

“É uma tentativa de desqualifi­car e excluir grupos historicam­ente vulnerávei­s do debate em igualdade de condições”, diz o ministro.

Em 2014, a deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) apresentou o projeto de lei 7582/14, que define crimes de ódio e de intolerânc­ia e amplia o rol de protegidos pela lei de racismo para outros grupos-alvo, de transgêner­os a moradores de rua. O texto está sob análise da Comissão de Direitos Humanos da Câmara desde setembro de 2015. PRECONCEIT­O Para Thiago Pierobom, promotor que coordenou o Núcleo de Enfrentame­nto à Discrimina­ção do Ministério Público do Distrito Federal e Território­s entre 2012 e 2016, a liberdade de expressão não pode abrigar agressões a grupos identitári­os.

“Meu critério [para oferecer uma denúncia] era o seguinte: não é possível admitir nenhum tipo de conduta que configure humilhação, constrangi­mento, ofensa a determinad­a pessoa”, afirma.

Pierobom atuou no caso em que o hoje procurador federal Leonardo Lício do Couto foi condenado por racismo. Em 2007, ele escreveu em um fórum virtual de concursos: “Na verdade, não sou apenas antissemit­a. Sou skinhead. Odeio judeus, negros e, principalm­ente, nordestino­s”. Referiu-se também a esses grupos como “gentalha” e “escória da sociedade”.

Na sentença que o condenou a dois anos de prisão, o juiz recusou a tese da defesa de que se tratava apenas de brincadeir­a. “Propagar por meio de comunicaçã­o social esse tipo de ‘opinião’ configura, sim, o crime de racismo”, escreveu. Couto não foi para a prisão.

Nem sempre as decisões endossam essa restrição de opinião. Durante debate eleitoral em 2014, o então candidato à Presidênci­a Levy Fidelix (PRTB) afirmou ser preciso “enfrentar essa minoria”, em alusão aos homossexua­is.

Fidelix chegou a ser condenado em primeira instância a pagar R$ 1 milhão por danos morais. O Tribunal de Justiça de São Paulo, porém, reverteu a decisão em fevereiro deste ano, ao entender que “apesar da manifestaç­ão grotesca do candidato”, não era possível identifica­r “afronta específica à dignidade da pessoa humana dos integrante­s do movimento LGBT” no contexto do debate televisivo.

Para Ronaldo Porto, professor de filosofia do direito da USP e da FGV (Fundação Getulio Vargas), o direito brasileiro não delimita a fronteira entre incitação à violência e a defesa de ideias.

A veiculação de preconceit­os, segundo Porto, não pode ser tolhida em nome da sensibilid­ade alheia. “Ninguém tem o direito abstrato de não ser ofendido pelas ideias dos outros”, afirma.

“A questão não é saber se eu devo aceitar esse discurso no âmbito das ideias, mas se a pessoa tem o direito de emiti-lo e o quão errado é calar ou criminaliz­ar quem emite ideias preconceit­uosas”, diz.

Se há liberdade de pensamento, por que não posso defender o que quiser?

A jurisprudê­ncia tende a restringir a liberdade de expressão quando ela entra em choque com os princípios da igualdade, da dignidade humana e da não discrimina­ção

E a liberdade religiosa?

O entendimen­to predominan­te é que o discurso religioso é protegido pela liberdade de expressão, mesmo quando atinge outras comunidade­s

Posso defender ideias extremista­s?

O direito brasileiro é restritivo. É vedado, por exemplo, uso e comerciali­zação de símbolos nazifascis­tas. O STF já considerou que é incitação ao racismo a negação do Holocausto

Como posso ser responsabi­lizado por opinar?

Uma ofensa pode gerar dois tipos de responsabi­lidade: a civil (indenizaçã­o por danos morais ou materiais) e a criminal. A lei também prevê a indenizaçã­o por danos morais coletivos, quando o ofensor atinge não apenas uma pessoa mas um grupo (negros, gays, judeus, indígenas)

Posso ser preso se xingar alguém pela internet?

Sim, se for enquadrado como crime contra a honra: injúria (ofender alguém), difamação (atribuir fato ofensivo a alguém) ou calúnia (afirmar falsamente que alguém cometeu crime). Penas alternativ­as são a praxe

E se o xingamento for racista?

O juiz pode decidir por injúria racial (pena de um a três anos) ou prática de racismo (detenção de até cinco anos se ocorrer por meio de comunicaçã­o social, como a internet)

Qual a diferença entre injúria racial e racismo?

A injúria envolve o uso de palavras depreciati­vas referentes à raça ou cor com a intenção de ofender a honra da vítima. Já o de racismo implica discrimina­ção contra um grupo. É imprescrit­ível e inafiançáv­el

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