Folha de S.Paulo

Sobre a leniência

- SÉRGIO RODRIGUES COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Leão Serva; terça: Rosely Sayão; quarta: Francisco Daudt; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Oscar Vilhena Vieira; domingo: Antonio Prata

O SUBSTANTIV­O “leniência” é a Palavra do Semestre. Sim, eu sei: é provável que o leitor nunca tenha ouvido falar da eleição de uma Palavra do Semestre. É que considero prudente preparar o terreno.

Parece lógico que a escolha da Palavra do Ano, a ocorrer neste espaço quando 2017 estiver chegando ao fim, se dê após uma final para a qual se classifica desde já a vencedora do primeiro turno.

A Palavra do Ano de 2016, vale lembrar, foi “falência”. Caso “leniência” demonstre fôlego para levantar o título dentro de seis meses, teremos um par drummondia­no, que será rima sem ser solução.

É cedo, de qualquer modo, para esse tipo de aposta. Às vezes parece cedo até para garantir que vai haver fim do ano.

“Leniência” tem como parente etimológic­o mais antigo em nossa língua um adjetivo, “lene”, de emprego tão raro que quase se pode dizer que caiu em desuso. O “Houaiss” o classifica como exemplo de linguagem formal; o “Aurélio”, como adjetivo poético.

“Lene”, do latim “lenis”, quer dizer suave, brando, doce. Liga-se ao verbo “lenir” (abrandar), igualmente raro, enquanto o substantiv­o tradiciona­l do clã é o também incomum “lenidade”. Da família, o farmacêuti­co “lenitivo” é um pouco mais popular.

Esses termos desembarca­ram no português há séculos. “Leniência” é diferente. É provável que esse substantiv­o, registrado em dicionário pela primeira vez em 1958, tenha sido um empréstimo do inglês “leniency”. A palavra do semestre é complicada: antônimo de rigor, pode ser um instrument­o para chegar a ele

Outra diferença é sua circulação bem maior. Acontece que “leniência” se espalhou não com o sentido amplo de suavidade, que também carrega, mas na acepção restrita —que em inglês existe desde o século 18— de “excesso de brandura na aplicação de leis e regras, falta de rigor na punição a quem as transgride”.

O segredo do sucesso da palavra está na linguagem jurídica: seu jeito de termo culto foi compensado pela penetração social que ganhou a bordo da expressão “acordo de leniência”.

Este, como se sabe, beneficia o infrator que, apresentan­do provas contra outros envolvidos em irregulari­dades, pode ser perdoado ou ter a pena reduzida. A princípio usado no âmbito das infrações econômicas, o acordo ganha o nome de delação premiada ao se estender ao direito penal.

A leniência é ambígua de berço. Justa diante de penas draconiana­s, injusta quando dá vida mansa a facínoras, é um antônimo de rigor que pode ser também um instrument­o para chegar a ele.

Todo torcedor sabe que um juiz de futebol leniente perde com frequência o controle da partida, que assim se torna cada vez mais violenta. Na grande arte de criar filhos, a leniência e o excesso de rigor costumam dar resultados igualmente desastroso­s.

Se a leniência já nasce com uma carga moral que, de longe, sem acesso às particular­idades de cada caso, é difícil de classifica­r, no quadro de confusão institucio­nal em que o Brasil anda mergulhado a dificuldad­e se agravou.

Tudo indica que a leniência de Rodrigo Janot com Joesley Batista foi exagerada, mas talvez tenha perdido para a leniência do TSE com a chapa Dilma-Temer. Esta, por sua vez, empalidece­u diante da leniência de Marco Aurélio Mello com Aécio Neves e de Edson Fachin com Rodrigo Rocha Loures.

Nada que se compare à leniência de todo um país com essa choldra.

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