Folha de S.Paulo

CRÍTICA Umberto Eco faz crítica feroz e contundent­e da comunicaçã­o virtual

Obra póstuma do italiano, ‘Pape Satàn Saleppe’ agrupa textos escritos entre 2000 e 2015 para revista ‘L’Espresso’

- MANUEL DA COSTA PINTO

FOLHA

Os italianos utilizam o neologismo “tuttologo” para definir intelectua­is e jornalista que têm a capacidade de falar de qualquer assunto com desenvoltu­ra, porém com superficia­lidade em todos.

Não é o caso de Umberto Eco (1932-2016), “tuttologo” cujo livro póstumo “Pape Satàn Aleppe” transpira erudição até mesmo em assuntos corriqueir­os —como os vícios de linguagem de seus conterrâne­os ou os vícios de alcova do ex-premiê Silvio Berlusconi (num texto que enumera expressões latinas para práticas sexuais como “more ferino”, “cunnilingu­s” e “delectatio morosa”).

Em se tratando de semiólogo e medievalis­ta que, em “O Nome da Rosa” levou intrincado­s enigmas retóricos para o romance policial, vale dizer que o título “Pape Satàn Aleppe” veio de um verso do “Inferno”, de Dante Alighieri.

No prefácio, Eco diz que os diferentes intérprete­s da “Divina Comédia” não chegaram a consenso sobre a obscura frase, dita por Pluto na entrada do inferno dantesco. E que, portanto, “estas palavras confundem as ideias e podem se prestar a qualquer diabrura” —como as que Eco comete ao escrever, sempre com humor, sobre racismo e fundamenta­lismo, mídia e pornografi­a na internet, fofocas políticas ou o impacto da longevidad­e contemporâ­nea.

Edições críticas de Dante sugerem que a tal frase pode significar tanto “Oh Satanás, ai de mim!” quanto “Pare, esta é a porta de Satanás!”. Fato é que o demônio contra o qual Eco se insurge (ou o inferno cujos círculos percorre) está bem explicado no subtítulo do livro: “Crônicas de uma Sociedade Líquida”.

A expressão foi cunhada pelo sociólogo polonês Zygmunt Bauman e permite a Eco identifica­r a crise das antigas autoridade­s (religiões, comunidade­s, Estados nacionais, ideologias) que levou à “liquefação” de todas as referência­s e explicaçõe­s do mundo, lançando os indivíduos na “bulimia sem escopo” da sociedade de consumo.

O livro agrupa tematicame­nte crônicas escritas entre 2000 e 2015 para “La Bustina di Minerva”, coluna na revista “L’Espresso” que Eco criou em 1985. Algumas são obscuras para quem não conhece a vida política e as figuras midiáticas da Itália. Outras partem de fatos jornalísti­cos ou da publicação de livros para discutir o relativism­o filosófico de Nietzsche a Richard Rorty ou “o terceiro segredo de Fátima” e sua exegese pelo cardeal Ratzinger —então futuro papa Bento 16.

Entre a crônica e o ensaio, “Pape Satàn Aleppe” satiriza ferozmente (e profeticam­ente) os costumes em tempos de comunicaçã­o virtual. “Dar Tchauzinho” (2002), por exemplo, descreve a obsessão de ser visto ou falado em termos que cabem perfeitame­nte aos energúmeno­s do Facebook (que só seria criado dois anos depois) ou do Twitter (tema da crônica “Tuíto, Logo Existo”).

Não por acaso, ao final desse livro em que afirma que “a aparição na telinha é o único substituto da transcendê­ncia”, Eco colocou o texto que esclarece sua célebre declaração sobre “os imbecis da web” —a saber, que o antigo “idiota da aldeia”, que antes esbravejav­a no boteco da esquina, hoje vocifera nas redes sociais. AUTOR Umberto Eco TRADUÇÃO Eliana Aguiar EDITORA Record QUANTO R$ 59,90 (420 págs.) AVALIAÇÃO muito bom

 ??  ?? Umberto Eco retratado no museu do Louvre, em Paris, onde era exibida a mostra ‘Mille e Tre’
Umberto Eco retratado no museu do Louvre, em Paris, onde era exibida a mostra ‘Mille e Tre’

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil