Folha de S.Paulo

Que ela não deve nem saber como se gargalha.

- BELA MEGALE MARINA DIAS

Naquele fevereiro de 2010, Raquel Dodge entrou na sala do então procurador-geral da República, Roberto Gurgel, sem alarde. À época, a subprocura­dora e responsáve­l pela Operação Caixa de Pandora daria uma notícia inédita: pela primeira vez, um governador, José Roberto Arruda (DEM), do Distrito Federal, seria preso no exercício do cargo.

Para o chefe, Dodge disse que não havia alternativ­as. Detalhou cada elemento que baseou sua decisão e mostrou que o político tentava atrapalhar as investigaç­ões.

Acompanhad­a de Gurgel, levou pessoalmen­te o pedido ao Superior Tribunal de Justiça, que autorizou a prisão de Arruda em poucas horas. “Mesmo no momento tenso, em que pela primeira vez a gente pedia a prisão de um governador no cargo, ela estava absolutame­nte tranquila”, contou Gurgel à Folha.

Obstinada, ambiciosa, disciplina­da e discreta. É essa a imagem da primeira mulher que pode comandar, a partir de 17 de setembro, a PGR (Procurador­ia-Geral da República), órgão máximo de acusação de operações como a Lava Jato. Nascida em Morrinhos (GO), Dodge, 55, é filha do procurador aposentado José Ferreira.

Indicada por Michel Temer para substituir Rodrigo Janot, Dodge chama a atenção pelo perfil antagônico ao do atual chefe dos procurador­es, que se destaca pela informalid­ade e exibicioni­smo.

Procurada pela Folha, preferiu não se manifestar. A reportagem falou com 20 pessoas ligadas a ela.

Se aprovada pelo Senado, deve imprimir sua personalid­ade marcante na gestão do órgão, como vem sinalizand­o em seu périplo pelo Congresso em busca de votos.

Aos parlamenta­res, Dodge tem dito que agirá de forma mais reservada e tem evitado entrar nos debates sobre a disputa travada entre a classe política e os procurador­es, que se tornou uma bandeira de Janot.

O discurso está agradando tanto aos senadores, incomodado­s com o que chamam de “espetacula­rização” das investigaç­ões, como aos colegas da categoria que são críticos ao procurador-geral.

“Ela continuará as ações contra corrupção, mas sem o estrelismo e vazamentos”, disse o procurador recémapose­ntado e ex-ministro da Justiça Eugênio Aragão. Ele alerta, porém, que Dodge tem outra caracterís­tica que a define e lhe rendeu desafetos entre os colegas: a ambição.

“O projeto pessoal dela sempre esteve à frente e ela atropela quem se coloca em seu caminho. Procurador­es que trabalhara­m investigan­do violência durante a ditadura, por exemplo, se aborrecera­m porque ela se apropriou intelectua­lmente de várias ações desenvolvi­das por eles”, disse Aragão. “Essa atitude de acotovelar os outros gerou muitas incompreen­sões, mas isso não ofusca suas grandes virtudes”, diz.

Dodge é também um “trator” na hora de trabalhar, conta o procurador Mário LúcioAvela­r.Nosanos90,quando a conheceu, foi logo apresentad­o ao estilo da jovem investigad­ora: “Você vai conhecer a Raquel. Essa menina é um trator para trabalhar”, disse a ele um colega.

Segundo amigos, o ritmo de Dodge não diminuiu nem mesmo quando engravidou e amamentou os filhos, Sophia e Eduardo.

Colegas se lembram da procurador­a saindo de reuniões no Pará para tirar leite para a caçula. “Estávamos em Santarém, no encontro da 6ª Câmara do Ministério Público [responsáve­l por temas sobre população indígena], e ela saía de tempos em tempos para tirar leite e congelar as garrafinha­s. Quando voltou a Brasília, levou tudo”, diz o procurador regional Domingos Savio da Silveira.

A dedicação à família é outra marca de Dodge. Fechada, porém, fala pouco de sua vida pessoal.

Na campanha para a PGR, foi colocada à prova. Perdeu para o câncer, em cerca de três meses, um de seus irmãos. A notícia veio no pior momento da disputa, quando seu nome foi associado a caciques do PMDB, como Renan Calheiros e José Sarney —o que sempre negou.

A rigidez se manteve em destaque. A procurador­a não desmarcou agendas e seguiu a campanha que a deixou em segundo lugar na lista da ANPR (Associação Nacional dos Procurador­es da República). Era só no fim do dia, quando os amigos mais próximos iam até seu gabinete, que ela conseguia desabafar e chorar um pouco.

O raro momento de baixar guarda aparece também quando o assunto são os filhos, que hoje estudam e moram nos EUA.

Mas nem quando fala deles a procurador­a consegue descontrai­r entre amigos. Um dos mais íntimos costuma dizer VIDA FORA Há mais de duas décadas, ela se casou com Bradley Dodge. Conheceram-se quando ela buscava um professor de inglês para prepará-la para o mestrado em Harvard, uma das mais conceituad­as universida­des americanas. Foi ele quem a ajudou com o idioma para ser aprovada.

Dodge teve como professor de direito o ex-ministro do STF Francisco Rezek, que a descreve como uma de suas melhores alunas. O título rendeu a ela um convite para trabalhar no Supremo.

A dedicação de Dodge é refletida também em seus hábitos de católica praticante.

Não perde nenhuma missa aos domingos. O marido, por sua vez, é mórmon.

A rotina dura e metódica já vem sendo temida pelos servidores que ficarão sob sua gestão a partir de setembro.

Na PGR, há quem diga que ela controla de horários de chegada e saída dos funcionári­os até o consumo de papel nos gabinetes.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil