Folha de S.Paulo

Livro conta história do autismo, dos castigos físicos à neurodiver­sidade

Primeiro diagnóstic­o aconteceu em 1945; médicos já atribuíram transtorno à ‘frieza’ materna

- REINALDO JOSÉ LOPES

FOLHA

Em 1965, a revista “Life”, que tinha circulação semanal de 8,5 milhões de exemplares, publicou um ensaio fotográfic­o inimagináv­el nos dias de hoje. O mote das imagens: crianças com autismo apanhando de cientistas —como forma de terapia.

Com o título “Gritos, Tapas e Amor”, a reportagem detalhava os esforços supostamen­te bem-sucedidos do psicólogo de origem norueguesa Ole Ivar Lovaas (19272010), da Universida­de da Califórnia em Los Angeles.

Lovaas e colegas assegurava­m que métodos empregados originalme­nte em experiment­os com camundongo­s ou pombos (como as guloseimas usadas para “reforçar” comportame­ntos positivos e os choques elétricos que serviam para punir ações indesejáve­is) podiam ensinar meninos e meninas autistas a fazer contato visual com outras pessoas, a falar e a evitar as ações repetitiva­s que caracteriz­am casos do transtorno.

As imagens da “Life” mostravam o rosto de um menino chorando no exato momento em que era esbofetead­o, os espasmos causados por um choque elétrico no corpo de uma garota e, paradoxalm­ente, os pesquisado­res abraçando algumas das crianças que se comportava­m da maneira desejada (“reforço positivo”).

tiveram papel crucial na sistematiz­ação do conhecimen­to e na criação de terapias

ESCALADA DA EMPATIA A história acima é provavelme­nte a mais aterroriza­nte do livro “Outra Sintonia: A História do Autismo”, dos jornalista­s americanos John Donvan e Caren Zucker, mas há outros exemplos impression­antes nas mais de 600 páginas da obra.

Embora o objetivo do livro— cumprido, aliás, com maestria— seja contar como acompreens­ãoarespeit­odesse multifacet­ado transtorno avançou desde a primeiro diagnóstic­o (durante a Segunda Guerra Mundial), também fazsentido­lê-locomoumae­spécie de escalada da empatia.

Vale dizer: a história do autismo é um esplêndido estudo de caso sobre como as atitudes em relação à diversidad­e comportame­ntal humana se metamorfos­earam ao longo do último século —sobre como, a duras penas, pessoas com o transtorno passaram a ser vistas como gente.

Na linha de frente da batalha estiveram, previsivel­mente, as mães e os pais de crianças com autismo. O lado materno merece menção especialpo­rque,seguindohi­póteses dematrizfr­eudianasem­amenor base empírica, muitos especialis­taschegara­maatribuir­oproblemaà­chamada“mãe geladeira”. Ou seja: crianças se tornavam autistas por perceberam(consciente­menteou não) falta de amor de suas mães, rezava a lenda.

A ideia foi formulada inicialmen­te pelo primeiro psiquiatra a diagnostic­ar o autismo, o austríaco-americano Leo Kanner(1894-1981),esuaaceita­ção acrítica levou famílias já desesperad­as a encarar horas de terapia para curar a suposta frieza, sem efeito positivo sobre as crianças afetadas. (Maistarde,Kannermudo­ude posição, embora negasse ter propagado o mito.)

Sintomatic­amente, foi só graças a um psicólogo que também era pai de um menino com autismo, o americano BernardRim­land(1928-2006), que a tese da “mãe geladeira” foi derrubada —por meio da análise de uma montanha de dados comparativ­os, como convém à ciência de verdade.

Também foram “pais do autismo” os principais responsáve­is por pensar em terapias inovadoras e baseadas em evidências, por organizar o financiame­nto para elas e mostrar ao público a gravidade do transtorno. ‘PIOR QUE A MORTE’ Ambos os autores possuem casos do problema na família, mas isso não significa que eles escamoteie­m os momentos em que o preconceit­o e o desespero levaram pais e mães a abandonar seus filhos. Especialme­nte dolorida é a histórias de Archie Casto, internado aos cinco anos de idade no Hospital Estadual Para Dementes de sua cidade na Virgínia Ocidental (EUA), em 1919, seguindo recomendaç­ão médica —a mãe de Archie se limitou a explicar à irmã dele que “certas coisas são piores que a morte”.

Casto perdeu todos os dentes da boca, todas as poucas palavras que um dia falara e nunca alcançou uma estatura superior à de uma criança de nove anos (morreu aos 83).

Nos últimos anos, o diagnóstic­o crescente de indivíduos que possuem linguagem e intelecto normais ou até de alto nível, às vezes classifica­dos comoportad­oresdasínd­rome de Asperger (hoje considerad­a parte do chamado espectro autista), deu voz própria aos que têm o transtorno.

Alguns deles falam em “neurodiver­sidade” —a ideia de que o autismo é uma parte natural do repertório mental humano. As coisas mudam —às vezes, até para melhor. AUTORES John Donvan e Caren Zucker EDITORA Companhia das Letras TRADUÇÃO Luiz A. de Araújo PREÇO R$ 39,90 (ebook); 664 págs.

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