Folha de S.Paulo

Orgulho e preconceit­o

- MAURICIO STYCER

À PRIMEIRA vista pode parecer precoce um ator de 38 anos escrever um livro com reminiscên­cias da infância e um balanço de sua experiênci­a profission­al. Mas reside justamente aí a força e o impacto do recém-lançado “Na Minha Pele” (Objetiva, 148 págs., R$ 34,90).

Ao expor a sua biografia, Lázaro Ramos propõe uma reflexão importante e, eventualme­nte, incômoda sobre racismo e a luta pela afirmação da identidade negra. “Existe todo um discurso de que não há racismo no Brasil. Afinal, nós fazemos parte de um povo pra lá de miscigenad­o. Mas quem é negro como eu sabe que a cor é motivo de discrimina­ção diária, sim”, escreve.

Como ele mesmo lembra, nenhum outro profission­al com visibilida­de na mídia está tão bem situado para refletir sobre este assunto. “Sou o ator negro com mais protagonis­tas da história da TV brasileira: juntando televisão, cinema e teatro, já são mais de 40”.

Sua iniciação profission­al se deu aos 16 anos, em Salvador, nos palcos do Bando de Teatro Olodum — uma companhia fundada em 1990 e ainda em atividade, cujo foco principal sempre foi combater o racismo. Ali aprendeu: “Eu não devia chamar meus ancestrais de escravos, e sim de africanos escravizad­os”.

Lázaro diz que uma das motivações para escrever o livro foi refletir sobre “os desafios de ascender socialment­e e se inserir em outra realidade sendo uma exceção”. Ao mesmo tempo, sabe que há uma armadilha aí:

“Quando nos prendemos muito a esse elogio da história pessoal (‘ela veio da favela e conseguiu’), corremos o risco de dizer que o outro não conseguiu porque não quis, e isso não é verdade. A exceção simplesmen­te confirma a regra”, escreve.

Por outro lado, lembra que o objetivo de sua militância é inclusivo: “O orgulho de minhas origens não se sobrepôs a um grande ensinament­o que recebi em casa: o de não estimular a separação”.

A parte mais interessan­te de “Na Minha Pele” é ver como, ao adquirir consciênci­a do peso da mídia e, em especial, da televisão, Lázaro foi construind­o uma carreira singular.

“Entre 1994 e 2014, apenas 4% das protagonis­tas das novelas da Rede Globo foram interpreta­das por mulheres não brancas”, escreve, citando um estudo. E explica por que nunca aceitou fazer novela de época: “Não quero, porque pelo modelo das novelas de época daqui eu vou ser escravo”.

E acrescenta: “Eu não estava (e ainda não estou) a fim de usar calça de algodão cru e ser chicoteado para depois ser salvo por uma mulher branca —a heroína salvadora, que em suas anáguas guarda o heroísmo de X-Men mesmo sem ser mutante e deixa claro que a branquitud­e é o padrão a ser seguido”.

Não à toa, abriu exceção em “Lado a Lado” (2012), uma das melhores novelas da Globo nesta década, que mostrou as transforma­ções do Rio, entre 1904 e 1910, sob o olhar do seu personagem, um capoeirist­a. Considerad­o um fracasso de audiência, a trama de Claudia Lage e João Ximenes Braga venceu o Emmy Internacio­nal, superando “Avenida Brasil”.

Lázaro conta, também, que já recusou inúmeros papéis por ter que usar arma de fogo. “Recusei porque a imagem que ficaria era a de um negro com uma arma na mão... E isso num contexto de normalidad­e.” E observa: “Falar das motivações dos ‘não’ talvez traga alguma reflexão sobre como o personagem negro tem sido tratado pela dramaturgi­a brasileira”.

Destaco, por fim, mais uma observação importante do ator: “Não quero fazer patrulha nem fiscalizaç­ão do politicame­nte correto, mas trazer uma reflexão sobre como nós, um país extremamen­te diverso, ainda somos tão atrasados em nossa percepção sobre nós mesmos”.

Em livro biográfico, Lázaro Ramos mostra como tenta desconstru­ir a ideia de que não há racismo no Brasil

mauriciost­ycer@uol.com.br facebook.com/mauricio.stycer

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