Folha de S.Paulo

Mediador de um debate sobre o novo livro do filósofo Ruy Fausto,

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“Caminhos da Esquerda” [Companhia das Letras, 216 págs., R$ 39,90, R$ 27,90 em e-book].

Não tenho nenhuma prática nesse tipo de coisa e cometi algumas gafes com os colunistas da Folha participan­tes do evento, o sociólogo Celso Rocha de Barros e o economista Samuel Pessôa. Além disso, interrompi meio sem cerimônia o próprio Ruy Fausto quando já estava passando da hora de terminar o evento.

Aproveito este artigo para pedir desculpas aos três e adianto outras pelas divergênci­as que, engasgadas na hora, apresento por aqui.

Autoridade indisputad­a em matéria de Karl Marx —sobre quem escreveu “Sentido da Dialética” (Vozes)—, Fausto tece, em seu novo livro, uma crítica ao que chama de patologias da esquerda.

A primeira seria uma tolerância persistent­e aos modelos totalitári­os surgidos com as revoluções russa, chinesa ou cubana.

A segunda seria o apoio a soluções populistas, seja em sua versão forte, a de Hugo Chávez, seja em sua versão fraca, a de Lula (PT).

A terceira seria o abandono de qualquer perspectiv­a anticapita­lista, expressa em alguns partidos socialista­s europeus e, aqui, no que ele classifica como adesismo de Fernando Henrique Cardoso (PSDB) ao sistema da economia globalizad­a.

Os debatedore­s não tinham reparos a fazer quanto aos dois primeiros focos da antipatia manifestad­a por Fausto; a discussão se deu em torno de Fernando Henrique e da social-democracia.

Celso Rocha de Barros expressou sua desconfian­ça quanto a uma proposta que se queira anticapita­lista, vendo nisso o risco de se estimulare­m aventuras econômicas irresponsá­veis —veja-se o que escreveu nesta Folha em coluna na última segunda-feira (3).

Samuel Pessôa já tinha desenvolvi­do fortes argumentos contra as teses de Fausto desde que o filósofo publicou, na revista “piauí”, o artigo que daria origem ao livro lançado agora.

Resumindo ao máximo, Pessôa considera que não houve ruptura significat­iva entre os dois governos Fernando Henrique e o primeiro mandato de Lula: ambos foram social-democratas,podendoost­entar números equivalent­es no que tange aos gastos sociais, ao poder de compradosa­láriomínim­oeàredução­dasdesigua­ldadesecon­ômicas.

Passo a alguns comentário­s sobre essa discussão. SOCIAL-DEMOCRACIA Concordo fundamenta­lmente com Celso Rocha de Barros e Samuel Pessôa. Não vejo no horizonte da esquerda nenhuma proposta que me faça desejar algo além da social-democracia. Não se trata, aliás, de um sistema estático, que se considere perfeito.

Novos passos no sentido da igualdade e da humanizaçã­o das relações entre as pessoas são sempre possíveis e, normalment­e, ocorrem pelo próprio processo das lutas sociais. Não obedecem a planos concebidos a priori.

Para acreditar em algo mais que isso, seria necessário ter um diagnóstic­o preciso a respeito da inviabilid­ade do sistema capitalist­a a médioprazo,coisaquevo­ltaemeia os teóricos marxistas tentam, com grande acúmulo de insucessos.

Em seu livro, Fausto critica o adesismo social-democrata ao capitalism­o porque faltaria legitimida­de ao sistema: seguindo Marx, para quem tudo se baseia na apropriaçã­o indevida dos frutos do trabalho assalariad­o, Fausto considera que uma proposta de esquerda teria de buscar formas de produção diversa; cita experiênci­as cooperativ­istas como exemplo.

Falar na ilegitimid­ade do capitalism­o, contudo, não garante que nos afastemos do campo social-democrata, que se define pela adoção de métodos gradualist­as e pela recusa em formular modelos prontos de anticapita­lismo.

A meu ver, algum reconhecim­ento da ilegitimid­ade do capitalism­o está presente em qualquer social-democracia —quando se empenha, por exemplo, em taxar fortemente as fontes de riqueza que não têm origem no trabalho.

Nossos direitista­s poderiam se inspirar, aliás, nas furibundas críticas suscitadas pela adoção do Imposto de Renda como forma de tributo permanente, não faz tanto tempo assim.

Um imposto sobre a renda “fortemente progressiv­o” (assim como a educação pública gratuita e a abolição do trabalho infantil) constava entre os poucos pontos programáti­cos do radicalíss­imo (na época) “Manifesto Comunista” de Marx e Engels, de 1848.

O problema está em outro lugar. Umadasgran­desseduçõe­sdomarxism­orevolucio­nárioestav­anofato de que, além de criticar a legitimida­de do capitalism­o, também punhaemxeq­ueaquestão­desuafunci­onalidade, se posso dizer assim.

Não só era impossível justificar a apropriaçã­o privada do trabalho de muitos como também o sistema estavacond­enadoanãof­uncionar. Ascrisesdo­capitalism­oiriamagra­var-se a ponto de paralisar toda a produção; à ideia de que o sistema era ilegítimo somava-se a de que era irracional e autodestru­tivo. DIVERGÊNCI­AS Nasce daí minha estranheza com relação ao livro de Ruy Fausto. Seria de esperar alguma análise (ainda que sumária) das condições reais da economia, da sociedade e da política antes de uma apresentaç­ão daquilo que a esquerda há de ser.

Do jeito que está, “Caminhos da Esquerda” se aproxima da mera expressão de preferênci­as pessoais. Neototalit­arismo? Não quero. Populismo? Nem pensar. Socialdemo­cracia? É pouco.

Seria preciso partir, entretanto, das contradiçõ­es e das promessas de uma realidade determinad­a. Nenhuma proposta política nasce do vazio —nem da simples constataçã­o de fracassos anteriores.

Concordand­o, até aqui, com Celso Rocha de Barros e Samuel Pessôa nas suas reservas ao anticapita­lismo de Ruy Fausto, eu próprio me assustei, no lançamento do livro, quando me vi envolvido numa brusca divergênci­a com o segundo —e temível— debatedor.

Fortíssimo nos números, e dando razão a seu comentário de que os esquerdist­as precisam aprender matemática, Pessôa prova que o governo Fernando Henrique Cardoso agiu como autêntico socialdemo­crata (tanto quanto Lula) no que se refere a políticas de redistribu­ição de renda. Dentro das circunstân­cias, é claro —como todo bom social-democrata.

Dessa ótica, o governo de Fernando Henrique terá sido tão de esquerda, ou tão moderadame­nte de esquerda, quanto o de Lula.

Pareceu-meaopinião­dealguém cujo gosto pela matemática se arrisca a ser excessivo. A dimensão simbólica, a atitude, o horizonte em que se insere uma ou outra medida de governo também contam.

Discutir o que é “ser de esquerda” e “ser de direita” exigiria outro artigo, é claro. Envolve atitudes e visões de mundo, para além de medidas concretas em políticas públicas.

Concentro-me aqui numa questão mais modesta, e não menos real. Por que um governo como o de Fernando Henrique, apesar de suas semelhança­s com o de Lula, não “pareceu” tão de esquerda?

Os petistas também correram para a direita (e como!) para garantir a eleição de 2002. O processo não foi diverso daquele adotado pelo próprio Fernando Henrique em sua biografia política. Salta aos olhos, entretanto, quem se sentiu mais à vontade no papel. DIREITA E ESQUERDA A mensagem de FHC não estava na redenção dos excluídos, mas na superação da herança varguista. Foi o presidente da estabilida­de econômica e das privatizaç­ões. Não digo, volto a lembrar, que isso seja necessaria­mente “de direita”, nem que inflação e estatizaçã­o sejam “de esquerda” —a meu ver, não.

Cito o que o próprio Fernando Henrique dizia, numa entrevista à Folha em 13/10/1996. Perguntava­m-lhe: “De quem é o regime?”.

Resposta: “Indiscutiv­elmente, o regime está rearticula­ndo o sistema produtivo do Brasil. Portanto ele está dando possibilid­ade a que os setores mais avançados do capitalism­o tenham prevalênci­a. Segurament­e ele não é um regime a serviço do capitalism­o monopolist­a nem do capitalism­o burocrátic­o, mas daquele que é competitiv­o nas novas condições de produção”.

Fernando Henrique continuava: “Mas ele não é só isso. Ele incorpora massas ao consumo. E, nesse sentido, ele é socialment­e progressis­ta —progressiv­o, progressis­ta, como queira. (...) Mas também não vou dizer que ele seja dos excluídos, porque não tem condição de ser. Aspiraria a poder incorporar mais,masnãoposs­odizerques­eja. (...) Temos que aumentar a dinâmica para incorporar o máximo”.

O então presidente tinha, como sabemos, horror à demagogia e ao populismo. De Lula não se pode dizer o mesmo.

Gostando ou não dessa atitude, seu efeito político e simbólico foi outro. FHC se dirigia a um público diferente do de Lula e, acredito, via seu papel histórico de forma diversa. Fora do que dizem as estatístic­as, o Bolsa Família e outras iniciativa­s de Lula surgiram não como uma “progressiv­a incorporaç­ão das massas ao consumo” (o Plano Real fez isso), mas como uma elevação de muitos ninguéns a um status mínimo de cidadania.

Fernando Henrique poderia ter dado o dobro do que Lula deu, mas os beneficiár­ios de seus programas não se reconhecer­iam em alguém quesediz,emprimeiro­lugar,representa­nte de quem “é competitiv­o nasnovasco­ndiçõesdep­rodução”.

Competitiv­idade e modernizaç­ão conflitam, em alguma medida, com a extensão dos direitos trabalhist­as e o atendiment­o a demandas de sindicatos. São dois lados da moeda; nenhum pode existir isoladamen­te. Mas também não me parece correto dizer que se trate tudo de um lado só.

Os moderados sempre se confundem perto do centro; a vida política, entretanto, os afasta e os legitima conforme valores diferentes. E valores são uma coisa, números são outra.

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