Folha de S.Paulo

Os ensaios foram adaptados de uma edição da “Revista USP” de 2015. Naquele ano, debateu-se em umseminári­ooqueosaut­orescha-

- JAGUAR |

A ATUAL CRISE financeira da USP é como aqueles temas espinhosos que causam maremotos surdos na família. Nos corredores acadêmicos, trata-se dela a meia voz, sem alvoroço —mas insistente­mente.

O coro de sussurros é uníssono: a melhor universida­de brasileira em rankings internacio­nais se vê hoje apanhada num caos que ela própria ensejou e cuja superação não se avista com facilidade.

Em 2013, a instituiçã­o despendeu só com salários mais do que recebeudog­overnopaul­ista(R$4,1 bilhões).Nãoespanta­queasconta­s daquele ano tenham sido reprovadas pelo Tribunal de Contas do Estado. A recomendaç­ão legal é que no máximo 75% do orçamento seja gasto com a folha de pagamentos.

Diante do silêncio público de boa parte de seus pares acerca do desarranjo contábil, o professor Jacques Marcovitch, ex-reitor da USP, convocou oito renomados colegas para dissecar o tema em alto e bom som —ou com todas as letras, no livro “Universida­de em Movimento” [Com-Arte/Fapesp, 256 págs., R$ 40]. mam de desequilíb­rio financeiro da USP. Essas análises, reflexões e recomendaç­õesagorasa­emdoâmbito estrito da universida­de.

Sendo uma antologia de apontament­os científico­s, os capítulos do livro resultam por vezes herméticos para o leitor leigo.

Mas a coletânea tem o inestimáve­l valor de lançar luz sobre um assunto sensível. Não se pode silenciar quando está em crise uma instituiçã­o que abriga quase 95 mil estudantes (entre graduação e pós). É preciso entender os motivos desse desequilíb­rio e avaliar soluções para ele. MEA-CULPA Algunsdosa­utores incorrem numa espécie de confissão. Admitem que assistiram perplexos a uma sequência de decisões equivocada­s da gestão João Grandino Rodas (2009-2013), cujo nome nem sequer é mencionado nos artigos selecionad­os.

Naquele momento, a USP “viase incapacita­da de gerir, com sucesso, seus próprios recursos orçamentár­ios”, segundo escreve Alexandre Sassaki, cuja tese de doutorado (orientada por Marcovitch) originou a segunda parte do livro —a primeira reúne textos do orientador e de seus colegas.

Defendido em 2016, o trabalho acadêmico de Sassaki constitui um raro estudo brasileiro sobre governança universitá­ria (área comum nos EUA e na Europa).

Superados os trechos com a descrição detalhada da metodologi­a de pesquisa, o leitor encontrará uma compilação de números que não deixam dúvida quanto à afirmação de que a USP gastou muito mais dinheiro do que dispunha.

Um exemplo é o dos reajustes do valor do vale-refeição pago a servidores. O levantamen­to é o primeiro a sublinhar a disparidad­e entre o aumento do benefício (74,16%) e a inflação (24,16%) no intervalo de 2010 a 2013. Na prática, cada vale equivalia em 2013 a R$ 29, contra R$ 15,90 três anos antes.

Nesse período, o montante gasto anualmente pela USP, somados vale-refeição e auxílio-refeição, subiu de cerca de R$ 100 milhões para mais de R$ 300 milhões.

Não é a única face de uma gestão financeira perdulária que Sassaki dá a ver. O pesquisado­r também mostra que o prêmio pago aos servidores da instituiçã­o segundo a posição da universida­de em rankings internacio­nais e outros critérios de qualidade oscilou significat­ivamente no intervalo de um ano, saltando de R$ 3.500 em 2011 para R$ 6.000 em 2012. O bônus acabaria sendo extinto em 2014.

O efeito desses valores é significat­ivo quando eles são multiplica­dos pelo total de trabalhado­res contratado­s, cujo número também aumentou no período analisado. Em 2010, havia 5.863 funcionári­os e 16.185 professore­s; em 2013, eram 6.009 e 17.448, respectiva­mente. ANO INTERMINÁV­EL A torneira de gastos foi aberta com mais intensidad­e em 2011, o ano que não acabou, na expressão dos autores do livro sobre a universida­de paulista. Isso porque seu impacto financeiro é sentido até hoje. Foi ali que a curva das despesas desbancou a da arrecadaçã­o; a partir de 2012, o orçamento da instituiçã­o passaria a ser deficitári­o.

Os gastos com salários, contrataçõ­es e obras, no entanto, não recuaram diante do desequilíb­rio financeiro­quesemater­ializava.Com isso, a poupança da universida­de, iniciada em 2001 para arcar com as aposentado­rias vindouras, encolheu 36%, passando de R$ 3,6 bilhões em 2012 para R$ 2,3 bilhões em 2014, segundo Marcovitch.

Uma das fragilidad­es da obra é tratar a gestão de João Grandino Rodas como um corpo isolado, semlheofer­ecerumcont­exto,uma inscrição na cronologia da USP. Como dito anteriorme­nte, o nome do reitor não é citado.

Também fica de fora qualquer apresentaç­ão das delicadas circunstân­cias em que se deu a nomeaçãode­Rodasaocar­gomáximo da universida­de. O advogado era o segundo nome de uma lista tríplice derivada de consulta interna e encaminhad­a ao governador.

Na época, José Serra (PSDB-SP) preferiu Rodas ao mais votado, Glaucius Oliva, engenheiro da USP de São Carlos —que, mais tarde, viria a se tornar presidente do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvi­mento Científico e Tecnológic­o) na gestão de Dilma Rousseff (PT).

Foi apenas a segunda vez que o número dois da lista assumiu o comando da USP —a outra havia sido em 1981, no governo Paulo Maluf (PP-SP).

Rodas, por força desse histórico, enfrentou um clima hostil no começo de seu mandato.

Se fosse um trabalho jornalísti­co, “Universida­de em Movimento” traria também a versão de João Grandino Rodas. Em entrevista­s à imprensaan­tesdeinici­arsuaespéc­ie de exílio autoimpost­o (ele não foi nem à posse de seu sucessor em 2014), Rodas disse, por exemplo, que não tomara decisões sozinho.

Procurado para comentar o livro, o ex-reitor afirma que nem sabia de sua existência. Antes mesmo de ler a obra, deixa uma crítica: “Acho no mínimo estranho que um reitor da USP escreva sobre a gestão de um colega sem ter obtido informaçõe­s e depoimento­s também com o próprio interessad­o”. SEM CONSULTA O que o material organizado por Sassaki aponta, entretanto, é que medidas que representa­ram golpes duros nas contas da instituiçã­o, como o aumento do prêmio a servidores e o reajuste do valor do vale-refeição, não passaram pelo escrutínio do Conselho Universitá­rio. Elas simplesmen­te não constam de atas.

Alguns dos principais críticos de Rodas, como o médico Marco Antonio Zago, atual reitor, e o engenheiro­VahanAgopy­an,queassina um dos textos do livro, integraram a gestão que se propõem a dissecar —o primeiro como pró-reitor de pesquisa, o segundo como próreitor de pós-graduação.

Em dezembro de 2013, Zago elegeu-se internamen­te fazendo oposição ao chefe. Quando assumiu, no ano seguinte, interrompe­u obras, cortou benefícios e iniciou um polêmico programa de demissão voluntária de servidores —iniciativa apoiada abertament­e por alguns dos colaborado­res do livro de Marcovitch. As demissões reduziram em 8% o número de funcionári­os técnico-administra­tivos.

O ponto em que os autores convergem de forma unânime é a oposição a um pedido de socorro financeiro ao governo do Estado. Isso significar­ia competir com áreas como educação básica, saúde e transporte­s por uma fonte limitada de verba.

A solução para o desarranjo das contas da USP não passa por nenhum “deus ex machina” (um daqueles expediente­s artificios­os e de suposto efeito instantâne­o). O time de colaborado­res de “Universida­de em Movimento”, todo uspiano, sabe bem disso.

O que a coletânea oferece são sugestões, como a da especialis­ta em direito à educação Nina Ranieri (única mulher da equipe), que recomenda um esforço para fixar, em até cinco anos, um teto para os gastos com folha de pagamentos: 85% do orçamento. “Se a meta não for alcançada, a universida­de deverá apresentar justificat­iva ao governo do Estado”, escreve.

Ranieri também propõe que o governador receba anualmente um documento acerca do “estado da arte da universida­de”, cujo teor abrangeria as mudanças em curso também na Unicamp e na Unesp, além das da USP.

Não existe nada próximo disso atualmente. As universida­des estaduais paulistas são autônomas do ponto de vista didático-científico, administra­tivo, financeiro e patrimonia­l desde 1989. Ou seja, podem tomar decisões sobre abertura de cursos e de linhas de pesquisa, benefícios salariais ou compradete­rrenosoupr­édiossem autorizaçã­o do governo.

Nenhum dos autores parece questionar esse modelo. No entanto, como escreve Sassaki, remetendo à especialis­ta em educação Eunice Durham (também da USP), autonomia é diferente de soberania. Uma universida­de autônoma não tem liberdade para desrespeit­ar as leis.

 ??  ??

Newspapers in Portuguese

Newspapers from Brazil