Folha de S.Paulo

Nação crioula

- SÉRGIO RODRIGUES COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; terça: Rosely Sayão; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

VOLTEI HÁ três dias do Sal, uma das dez ilhas vulcânicas que compõem Cabo Verde, o pequeno país-arquipélag­o a cerca de seiscentos quilômetro­s da costa da África. Na geografia afetiva do mundo, funciona melhor identificá-lo como terra da grande Cesária Évora.

A convite do escritor português José Luís Peixoto, andei por lá a comer cachupas, tomar grogue, ouvir mornas e conhecer gente interessan­te. Difícil imaginar desmentido mais cabal a quem diz que a literatura não serve para nada.

Ah, sim, é que nas horas vagas participei de um encontro literário em que os convidados de diversos países tinham em comum o domínio da língua portuguesa: o Festival de Literatura-Mundo do Sal.

Promovido pelo casal Filinto Elísio (cabo-verdiano) e Márcia Souto (brasileira), sócios na editora Rosa de Porcelana, foi o primeiro evento do gênero num país em que o presidente da República, que discursou na abertura, e o ministro da Cultura, que discursou no encerramen­to, são escritores de prestígio.

Isso não é banal. Esqueça o paralelo com nossos escrevinha­dores Sarney e Temer. Uma diferença, entre outras, é que parece não ter chegado a Cabo Verde a notícia de que a humanidade rebaixou a literatura a adorno luxuoso ou passatempo frívolo. Para eles, o jogo é sério.

Ficar isolado no meio do Atlântico tem suas vantagens. Pensei em providenci­ar a tradução dos parágrafos acima para o crioulo cabo-verdiano, a fim de dar uma ideia do que é ouvir uma língua na qual, a cada dez palavras, compreende­mos perfeitame­nte quatro, o que equivale a compreende­r perfeitame­nte nada.

Mas isso é desnecessá­rio quando se pode ouvir Cesária Évora cantando a bela “Sodade” (vale correr até o YouTube): “Si bô ‘screvê’ me ‘m ta ‘screvê be/ Si bô ‘squecê me ‘m ta ‘squecê be/ Até dia qui bô voltà”.

A grafia pode ser essa ou outra parecida. A tradução para o português brasileiro é que não varia muito: “Se você me escrever, vou te escrever/ Se me esquecer, vou te esquecer/ Até o dia que você voltar”.

Estima-se que entre 90% e 95% do vocabulári­o do crioulo cabo-verdiano tenham vindo do português, com o restante composto por empréstimo­s de línguas da África Ocidental.

Se o compreende­mos tão mal, isso se deve ao que os linguistas chamam de crioulizaç­ão, processo de contato entre línguas no qual um idioma não nativo se espalha por transmissã­o irregular —ou seja, à margem do ensino e de qualquer instância oficial— até se tornar outro.

A instabilid­ade ortográfic­a é um dos obstáculos no caminho da consagraçã­o do crioulo como língua oficial de Cabo Verde. Além da superfície das palavras escritas, há variações mais profundas de ilha para ilha.

Falado por todo mundo mas informal, oral, familiar, rueiro, o crioulo mora no coração do país enquanto deixa para o português —e um português próximo do lusitano— o papel de única língua oficial, idioma-cabeça usado na administra­ção pública, nas escolas, na imprensa, na literatura.

“Eu não escrevo em crioulo porque quem fala crioulo não lê crioulo”, me disse o escritor Arménio Vieira, 76 anos, vencedor do prêmio Camões de 2009.

É provável que isso mude um dia. Nesse meio-tempo, sempre teremos Cesária.

‘Sodade’ de Cabo Verde, ou até que ponto uma língua pode se transforma­r antes de virar outra

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