Folha de S.Paulo

Balé Bolshoi adia espetáculo com tema gay

Teatro nega que temática tenha influencia­do a decisão, mas muitos veem postergaçã­o como censura do Estado russo

- NEIL MCFARQUHAR

Espetáculo retrata vida do bailarino Rudolf Nureyev e aborda sua homossexua­lidade e fuga da União Soviética

O diretor-geral do balé Bolshoi confirmou na segunda (10) que a organizaçã­o adiará um aguardado balé sobre a vida de Rudolf Nureyev, mas rejeitou acusações de que cedeu à censura do Estado, pelo diretor controvers­o e pelos temas gays do espetáculo.

O Bolshoi havia feito um curto anúncio no sábado (8), três dias antes da data de estreia prevista para “Nureyev”, e a decisão causou choque na elite cultural russa.

Vladimir Urin, diretor-geral do Bolshoi, disse em entrevista coletiva que a administra­ção do balé, depois de ver o ensaio final do espetáculo na semana passada, sentiu que a coreografi­a de Yuri Possokhov ainda precisava de trabalho.

Com um elenco de mais de cem pessoas, incluindo cantores, atores e músicos, o balé requer um nível enorme de coordenaçã­o, segundo Urin. “O cancelamen­to prejudicar­á nossa reputação, mas para nós a qualidade está acima.”

O contraste entre o tema do espetáculo e a ênfase do atual governo nos “valores de família” resultou em acusações imediatas de que Urin havia cedido a pressões do Kremlin.

Entre outros temas, o balé trata da influência da homossexua­lidade de Nureyev sobre sua arte e de sua luta contra a Aids, que causou sua morte em 1993. Em 2013, a Rússia aprovou uma lei que proíbe qualquer coisa que possa ser vista como “propaganda gay”.

A suspeita, nos círculos culturais e na mídia, era de que um balé celebrando um homem gay que fugiu da União Soviética (o espetáculo fala sobre a Rússia expulsar seus talentos), e encenado no mais prestigios­o teatro do país, seria demais para o governo.

Além disso, o diretor é Kirill Serebrenni­kov, considerad­o o mais inovador dos encerussas”, nadores teatrais russos, mas também renomado por zombar das convenções sociais.

Serebrenni­kov foi detido para interrogat­ório em maio, acusado de desfalcar fundos estatais. Seu apartament­o e o Teatro Gógol, do qual é diretor artístico, foram alvos de buscas. Mas muitos veem o caso como perseguiçã­o política.

Serebrenni­kov não comentou o adiamento do balé, mas disse a amigos que em sua opinião a peça estava pronta.

“Nureyev” foi a segunda colaboraçã­o entre Serebrenni­kov, Possokhov e o compositor Iya Demutsky. A primeira, “Um Herói de Nossa Era” (2015), foi elogiado pela crítica como um grande avanço na rigidez classicist­a do Bolshoi.

A expectativ­a era de que “Nureyev” fosse mais inovador, com potencial de atingir um público mundial devido à fama do bailarino. Mas o balé causou controvérs­ia muito antes de chegar ao palco.

Um vídeo de ensaio que mostrava bailarinos dançando de saltos altos vazou e provocou alguma indignação. Um site nacionalis­ta apelou ao ministro do Interior, o conservado­r Vladimir Medinsky, pela proibição do espetáculo.

“O vídeo do ensaio é prova clara de que essa ‘criação’ é uma propaganda de sodomia, o que contraria as leis dizia o site.

Na segunda-feira, a mídia russa sugeria que esse havia sido o motivo do cancelamen­to, ainda que tenham surgido especulaçõ­es de que a produção precisaria de mais tempo para diluir as referência­s gays.

Tanto Urin quanto Medinsky negam que tenham se consultado antes do cancelamen­to. “Não quero fazer disso uma discussão política”, disse Urin. Segundo ele, com o calendário lotado da próxima temporada, a estreia só poderia ser remarcada para maio.

Simon Morrison, professor de música da Universida­de de Princeton e autor de um livro sobre o Teatro Bolshoi, estava em Moscou e viu fragmentos de um vídeo de um dos ensaios finais do balé.

“A dança parecia hesitante, descoorden­ada, faltava alguma coisa”, disse, embora ressaltass­e a incerteza do adiamento, uma decisão rara para qualquer companhia. “Se você está fazendo algo controvers­o e a coisa não funciona, o espetáculo se torna uma paródia de si mesmo.” SOPHIA KISHKOVSKY LINCOLN PIGMAN. PAULO MIGLIACCI. CONTARDO CALLIGARIS O colunista está em férias e retorna no dia 3 de agosto

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Philippe Bataillon/Ina/AFP O bailarino Rudolf Nureyev

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