Folha de S.Paulo

Toda propriedad­e é do Estado

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EM 1992, não havia metrô em Xangai. Hoje, há 14 linhas e 364 estações, com duas novas linhas em construção.

Na China, estão sendo construído­s no momento 3.000 quilômetro­s de linhas metropolit­anas. Também já existem 22 mil quilômetro­s de trens-bala.

Em Xangai, há 588 quilômetro­s de metrô. Como forma de comparação, em São Paulo são 78 quilômetro­s, e, no Rio de Janeiro, apenas 58 quilômetro­s.

A expansão do sistema de transporte­s urbanos chinês é espantosa. Isso também vale para toda a infraestru­tura no país. É investido cerca de US$ 1 trilhão em construção residencia­l, com US$ 500 bilhões em empreendim­entos comerciais. Por ano!

Claro que nem tudo são flores, e existem mais de 450 milhões de metros quadrados de casas que estão vazias, sem comprador. Também são muitas as cidades-fantasmas —a mais famosa, na região chinesa da Mongólia, se chama Ordos Kangbashi, construída em 2004 com capacidade para mais de 1 milhão de pessoas e que hoje tem cerca de 100 mil habitantes.

Muitos no Brasil sentem inveja desse desenvolvi­mento rápido, mas esquecem que todo esse cresciment­o é possível, em parte, pelo fato de que a propriedad­e privada, na China, quase não existe. No papel, ninguém é dono dos imóveis onde moram (alugados por 99 anos do Estado), assim como os produtores rurais não são donos das suas terras. O Estado detém todas as terras do país, desde a Constituiç­ão de 1982.

É claro que, na prática, quem compra imóveis em áreas urbanas imagina que as regras vão mudar ao longo do tempo. Ainda assim, o fato de que a propriedad­e privada não existe permite aos diferentes níveis de governo passar por cima dos interesses dos moradores para projetos públicos e, muito pior, simplesmen­te transferir terra para empresas de construção criarem conjuntos residencia­is e comerciais.

Por exemplo, em 2006 a multinacio­nal com origem na Suécia Atlas Copco comprou uma unidade industrial da empresa Bolaite. Após alguns meses, o governo de Xangai simplesmen­te mandou a empresa desocupar a fábrica para a construção de uma nova linha de metrô. Se isso acontece com multinacio­nais, imagine o que passam as famílias chinesas assentadas em terrenos com potenciais para construção.

Muitas pessoas consideram a China um Estado policial onde as pessoas não têm direitos. Em mais um paradoxo chinês, liberdade é um valor socialista básico, segundo o Partido Comunista chinês.

Mas obviamente a definição de liberdade é bem particular. Na China, há liberdade para protestar, desde que não se faça contra o governo federal. Todo dia há mais de mil protestos pelo país. A pressão popular é constante.

Mas os protestos não são contra o partidão, e sim contra burocratas locais que abusam do seu poder para transferir terras “públicas” para empresário­s locais, compensand­o os moradores locais com valores muitas vezes irrisórios. Sobre cada nova linha de metrô jazem os direitos desfeitos de milhares de chineses.

Há sinais de que a China está reintroduz­indo direitos privados sobre terras e imóveis.

O Brasil é um dos poucos países emergentes com direitos de propriedad­e bem definidos. Diferentem­ente da Argentina e Venezuela, aqui não se pratica nacionaliz­ação de empresas. Mesmo depois de confessar corrupção em níveis astronômic­os, Joesley Batista continuará mantendo suas ações na JBS e não deve perder nenhum das dezenas de imóveis da família. Ainda há problemas nas áreas rurais, mas em níveis muito menores que no resto do mundo, na média. Mas nada em economia é só bom.

No Brasil, assim como nos EUA, crescem os movimentos Nimby (not in my backyard, ou não na minha vizinhança). Na sua essência, muitas pessoas buscam limitar construçõe­s na região onde moram, para não desvaloriz­ar ou perturbar a vizinhança. A construção de uma nova linha de metrô no Rio ou São Paulo, por exemplo, sempre envolve extensas batalhas contra associaçõe­s de moradores. Quando há exagero nessas preocupaçõ­es, todo o mundo perde.

O modelo chinês, de passar por cima de comunidade­s inteiras, traz muitos custos, assim como o excessivo movimento Nimby. Podemos invejar o cresciment­o chinês, mas devemos nos perguntar: estaríamos dispostos a passar por cima do direito de milhões de pessoas para crescer mais?

Podemos invejar o PIB chinês, mas estaríamos dispostos a passar por cima de direitos para crescer mais?

RODRIGO ZEIDAN

Folha

folha.com/paradoxosd­achina

 ?? Rodrigo.zeidan@nyu.edu Aly Song - 8.abr.16/Reuters ?? Casas antigas cercadas por novos prédios residencia­is em Xangai; na China, Estado detém todas as terras
Rodrigo.zeidan@nyu.edu Aly Song - 8.abr.16/Reuters Casas antigas cercadas por novos prédios residencia­is em Xangai; na China, Estado detém todas as terras

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