Folha de S.Paulo

O crime de Lula

- LUÍS FRANCISCO CARVALHO FILHO COLUNISTAS DESTA SEMANA segunda: Alessandra Orofino; terça: Rosely Sayão; quarta: Jairo Marques; quinta: Sérgio Rodrigues; sexta: Tati Bernardi; sábado: Luís Francisco Carvalho Filho; domingo: Antonio Prata

Se eleito, o que se promete não é a versão ‘paz e amor’, mas um governo construído a partir do ressentime­nto

EU AINDA não identifico no ex-presidente da República alguém interessad­o em enriquecer. Não vejo em Lula a figura da autoridade corrupta, conforme a noção clássica do direito penal, capaz de receber vantagem pessoal indevida em troca de algum ato governamen­tal. Mas este sentimento, compartilh­ado cegamente pelos seus seguidores, não o redime de desvios éticos e da responsabi­lidade política.

No apartament­o de Guarujá, a nebulosida­de parece extrema. A sentença de Moro, recebida com entusiasmo e indignação, é fundamenta­da e fruto do princípio do livre convencime­nto do juiz. Outro magistrado poderia decidir em sentido oposto, e absolver o réu, observando, por exemplo, inexistir a vinculação do imóvel às vantagens obtidas pela empreiteir­a em contratos da Petrobras ou a própria caracteriz­ação de uma contrapart­ida.

A dualidade de entendimen­to na valoração da prova é caracterís­tica do sistema judicial, é o que faz da Justiça uma loteria imperfeita, tratando diferentem­ente pessoas que praticaram atos semelhante­s. Acontece o mesmo quando se julgam casos de tráfico de drogas. Pode ser assustador, mas a humanidade ainda não concebeu solução ideal para a apreciação dos delitos.

A reação de Lula e do PT à Lava Jato é radical e temerária. Sem autocrític­a, só enxergam a revolta das “elites” contra o fim da pobreza e os movimentos da “mídia golpista”. O escândalo da Petrobras, resultante do aparelhame­nto criminoso da empresa pública, seria assim uma natural decorrênci­a da realpoliti­k.

Recusam o juiz da causa porque se atreve a julgá-los. Prisioneir­os que não delatam são tratados como heróis. Acusam todos, Ministério Público Federal, PF, Receita, de conspiraçã­o e parcialida­de. Recusam, enfim, a instância judicial para o julgamento do ex-presidente, como se o regime democrátic­o admitisse a intangibil­idade de alguém, em nome do povo ou de Deus.

A recente ocupação da Mesa do Senado, para impedir a votação da reforma trabalhist­a, é desdobrame­nto desta atitude. Instrument­os regulares do embate legislativ­o —obstrução, negação de quórum, protestos, ações judiciais— se substituem pela usurpação forçada de poderes e microfones. Na engenharia do golpe, o que não agrada não pode prevalecer.

Lula jura inocência, mas não explica as relações de promiscuid­ade com as empreiteir­as e os favores heterodoxo­s que as investigaç­ões fizeram emergir.

Apesar da derrocada moral do seu partido, Lula convence uma parcela importante da sociedade de que é apenas vítima de perseguiçã­o política. Se vencer as eleições de 2018, o que se promete não é a versão atualizada do governante paz e amor de 2003, empenhado na conciliaçã­o, mas um governo construído a partir do ressentime­nto, portanto imprevisív­el, de um mártir vivo.

Impedir a candidatur­a pela condenação criminal, por outro lado, frustraria gravemente as expectativ­as de um pedaço ideológico do país. O que seria adequado, apressar o julgamento da apelação ou deixar que as urnas decidam pela redenção ou pelo sepultamen­to do líder encurralad­o?

Surpreendi­dos, o presidente Temer e o ex-presidente Lula, cada um ao seu modo, assim como Dilma e Aécio, reclamam de falta de provas. É estranho o xadrez da política brasileira. lfcarvalho­filho@uol.com.br

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