Folha de S.Paulo

SOB O MESMO TETO diz.

Delegacia de São Gabriel da Cachoeira, no interior do Amazonas, funciona como presídio e tem celas masculina, feminina e para adolescent­es

- THAIS LAZZERI

DA REPÓRTER BRASIL

A única porta da delegacia municipal de São Gabriel da Cachoeira (AM) que dá acesso à carceragem está destrancad­a. Tão pesada quanto o ferro que a compõe é o que ela esconde. Além das condições insalubres e da superlotaç­ão, homens, mulheres e adolescent­es, a maioria indígena, dividem o mesmo teto.

“Nenhum direito nesta prisão é respeitado”, diz o delegado Rafael Wagner Soares, 36, responsáve­l pelo local.

A situação na cidade com mais indígenas no país descumpre uma série de artigos da Lei de Execução Penal. Presos provisório­s deveriam ir para cadeias públicas; condenados, para presídios; adolescent­es, para unidades socioeduca­tivas. Mulheres e homens não poderiam dividir o mesmo ambiente.

Em 54 dos 62 municípios do Amazonas, os presos cumprem penas em delegacias, diz a Secretaria de Administra­ção Penitenciá­ria do Estado. A capital, Manaus, é a única que possui unidades socioeduca­tivas (4) e uma provisória.

“Nós entramos com uma ação civil pública para que o Estado do Amazonas seja compelido a regulariza­r essa situação”, diz o promotor de São Gabriel da Cachoeira Paulo Alexander Beriba. “A gente trabalha com o que pode perante a falha estatal.” SUFOCANTE Na visita feita no final de maio, quando o delegado Soares escancara a porta para a reportagem, um sopro de vento quente ameniza o interior sufocante da cadeia, com um total de oito celas. Lá fora, os picos de temperatur­a no inverno chegam a 35°C.

Um emaranhado de fios pula da caixa da rede elétrica em direção às celas. Um dos “gatos” permite que o ventilador da cela 1 funcione ininterrup­tamente. O ar, viciado, vai na direção de apenas uma das quatro mulheres.

O aparente privilégio é, na verdade, preocupaçã­o com o futuro que cresce na barriga de Priscilla, 29. Indígena da etnia baré, foi presa há três anos. “Engravidei na cadeia.” Para explicar a gestação (afirma ter alcançado o quinto mês), diz: “Meu marido cumpria pena aqui também”. Priscila tem outros cinco filhos.

A pena dela termina em 2021, quando o bebê que nem nasceu completará 4 anos. Ao falar do filho, as mãos tremem. Ela para de tricotar uma blusa de bebê e chora. “Eu cometi um crime, fui condenada e tenho que cumprir minha pena. Mas eu mereço ser tratada com dignidade. Isso aqui é desumano.”

Outras duas mulheres indígenas (tukano e baré) e uma terceira, Ana, 39, que diz ser cabocla, cumprem pena na cela feminina, onde cabem só dois colchões de solteiro.

“Você imagina o que é ser mulher aqui?”, questiona Ana. Com a falta de água havia nove dias, as roupas sujas já não cabiam em baldes.

“Do meu peito escorre um líquido escuro. Quer ver?”, diz Ana. Sob o olhar das colegas, tira o peito para fora da blusa e pressiona o bico do mamilo esquerdo. Então, uma secreção escura escorre.

Colada à “ala” feminina há uma cela com adolescent­es, com idades entre 15 e 17. Três respondem por homicídio e um por tráfico de drogas.

“Já trabalhei em outros dois municípios no Amazonas [Carauari e Maraã]. É tudo igual. Aqui é o único Estado no Brasil onde homem, mulher e adolescent­e cumprem pena juntos. É um total abuso em cima de abuso”, afirma o delegado Soares.

“Essa situação é absolutame­nte ilegal. Os riscos são enormes para a integridad­e de todos”, afirma Henrique Apolinario, assessor do programa de justiça da ONG Conectas. “Isso é tortura e tratamento degradante institucio­nalizados”, ADOLESCENT­ES A reportagem estava na delegacia no dia da apreensão de um dos adolescent­es. Como os demais, ele provavelme­nte não verá um juiz. “O juiz vem uma vez por mês, julga os casos mais urgentes e vai embora”, diz Soares. “A Defensoria Pública fechou também”, afirma.

O pesquisado­r Guilherme Pontes, da ONG Justiça Global, diz ser “inadmissív­el” existir uma cela para adolescent­es dentro de uma cadeia com maiores de idade. “Essa história beira o absurdo. É a ilegalidad­e extremada.”

Soares e o investigad­or Alexandre Galvão Neto, 45, são os únicos responsáve­is pelos então 54 presos, pelas investigaç­ões de todos os crimes no município e pelas demais atribuiçõe­s da Polícia Civil.

São Gabriel é a terceira cidade com maior extensão territoria­l do país e com mais áreas protegidas da União. “Será que é um trabalho eficiente?”, pergunta ele, retoricame­nte. “Não fiz concurso para superhomem.”

O delegado chegou a São Gabriel no ano passado. Em 9 de setembro de 2016, enviou um memorando ao diretor do departamen­to da Polícia Civil do Interior sobre os problemas de cadeia.

Em fevereiro de 2017, Soares diz que investigou uma denúncia de tortura contra presos envolvendo policiais militares, então responsáve­is pela carceragem da delegacia municipal e da especial (para mulheres, crianças e idosos), que ficam no mesmo espaço.

Segundo ele, porém, a investigaç­ão não foi bem vista por PMs. Por isso, Soares “ganhou” o comando das delegacias. Ele encaminhou, então, outros três memorandos ao mesmo diretor, em 16 de março, 30 de março e 27 de abril. “Nunca me respondera­m.”

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Presos na delegacia de São Gabriel da Cachoeira (AM), que concentra celas para homens, mulheres e adolescent­es

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