Folha de S.Paulo

FLIP 2017 EU NÃO SOU SEU NEGRO

Autor Paul Beatty, que vem a Paraty e lança no Brasil ‘O Vendido’, sátira premiada sobre as relações raciais nos EUA que desafia rótulos, diz que não escreveu um livro para todos

- MAURÍCIO MEIRELES

Há um sorrisinho endiabrado em cada página de “O Vendido” —e o leitor vai rir, às vezes por diversão, outras de nervoso. O livro rendeu a Paul Beatty, um dos convidados da Flip deste ano, o Man Booker Prize de 2015, o principal prêmio literário do mundo anglófono.

Ele foi o primeiro americano a levar o troféu, depois que o Booker passou a permitir que qualquer autor de língua inglesa concorress­e, e não só aqueles dos países da comunidade britânica.

A vitória revelou para o mundo o trabalho da Oneworld, editora independen­te de Londres que o publicou —e que levaria Marlon James, também na Flip, ao mesmo troféu um ano depois. Como o romance de James, “O Vendido” foi rejeitado 18 vezes até ser publicado.

“Mesmo a Oneworld rejeitou!”, ri Beatty, em entrevista­à Folha por telefone. “Voltaram atrás depois de receber a dica de um crítico literário de um grande jornal.”

Uma explicação deve ser o estranhame­nto que o romance provoca no leitor, ao fazer piada com o que, pelo menos no Brasil, não é comum.

“O Vendido” é a história de um homem, morador de uma cidadezinh­a próxima de Los Angeles, que, por diversas circunstân­cias, acaba virando dono de um escravo idoso, Hominy —ex-ator da série “Os Batutinhas”.

Hominy vira escravo por vontade própria, diz que seu desejo também é “liberdade”. Para agradá-lo em seu aniversári­o, seu “sinhô” segrega os assentos de um ônibus —e o escravo sente-se feliz ao ceder o lugar para um branco.

É pouco? O leitor também vai corar em cenas como uma na qual o autor mostra um macaco chamado Baraka —em referência ao ex-presidente Barack Obama.

O protagonis­ta, mais à frente, instala a segregação na escola de sua cidade. E os brancos são proibidos de estudar nela. Não é para ficar confuso?

Por tudo isso, nas primeiras páginas encontramo­s o personagem na Suprema Corte respondend­o a um processo por violar a 13ª emenda da PAUL BEATTY Constituiç­ão americana, aquela que acabou com a escravidão no país.

“Não escolhi esse estilo. Eu escrevo como escrevo. Não penso no livro como uma sátira, como as pessoas definem. Acho sátira um termo limitador”, diz Beatty, antes de pedir para anotar “Lima Barreto” ao ouvir que o homenagead­o da Flip também era um satirista. LINGUAGEM O autor não viu risco em fazer graça de um assunto tão delicado?

“Sabia que alguns leitores podiam não gostar, mas não tenho nada a ver com isso. Não digo, no romance, que a escravidão é divertida, mas que tais e tais aspectos, ou tal jeito de olhar, pode ser engraçado. Mas o livro não é para todo mundo. Não foi escrito para ser”, diz Beatty.

A explosiva palavra “nigger”, considerad­a muito racista no Estados Unidos, espalha-se aos montes pelas páginas de “O Vendido”. Na tradução brasileira, ela é “crioulo”.

Em um momento de grande articulaçã­o da militância identitári­a —no campo racial e de gênero—, com grupos tão reativos ao uso da linguagem, como é fazer piada com o assunto?

“Até onde eu sei, nenhuma palavra foi proibida por lei. Embora haja quem gostaria de fazê-lo”, ironiza. “A linguagem, para mim, é o mais importante. Não a utilizo para chocar ou irritar. Só quero contar uma história e usar as palavras certas.”

Uma das piadas com o assunto é um intelectua­l negro que resolve reescrever “Huckleberr­y Finn”, clássico de Mark Twain marcado pelo jargão racista. O personagem troca “escravo” por “voluntário de pele escura”.

Ainda no assunto da linguagem, conto a Beatty que, em reportagem da “Ilustrada” de duas semanas atrás, mandamos um trecho do seu livro a um “leitor sensível”, membro de uma minoria contratado por editores internacio­nais para dizer se uma obra é ofensiva.

“Isso é um lixo. Todos têm tanto medo de tudo...”, diz.

Em vez de contratare­m pessoas de diferentes cores ou orientação sexual, por exemplo,

“alguns leitores podiam não gostar, mas não tenho nada a ver com isso. Não digo, no romance, que a escravidão é divertida, mas que tais e tais aspectos, ou tal jeito de olhar, pode ser engraçado. Mas o livro não é para todo mundo. Não foi escrito para ser

da Flip começou na sexta (14), pelo site premier. ticketsfor­fun.com.br e por pontos de venda. As entradascu­stamR$55,ainteira. Há o limite de dois ingressos por CPF, para cada mesa. Quem comprar pela internet pode retirá-los na bilheteria da Flip em Paraty. As vendas no site vão até 25/7. Depois, só no evento. AUTOR Paul Beatty TRADUÇÃO Rogério Galindo EDITORA Todavia QUANTO R$ 54,90 (318 págs.)

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