Ameaça da Coreia do Norte inspira memórias da Guerra Fria no Alasca
Com plano de defesa defasado, Estado dos EUA na mira de Pyongyang espera ação federal
Confiança na defesa americana e descrença na capacidade de Kim Jong-un declarar guerra amenizam preocupação
A poucos metros da mesa de trabalho da militar reformada Karen Kizis, 62, em Anchorage, no Alasca, há um kit para detectar radiação, manuais de instrução sobre como proceder em caso de ataque nuclear e uma placa amarela que sinaliza um abrigo para este tipo de emergência.
O material, no entanto, não poderá ser usado caso o ditador norte-coreano, Kim Jongun, resolva lançar contra o Alasca um dos mísseis balísticos intercontinentais que testou recentemente.
O kit, parte da exposição permanente do Museu dos Veteranos do Alasca, onde Kizis trabalha como voluntária, é lembrança dos tensos anos da Guerra Fria, período em que os moradores do Estado dizem acreditar ter havido um risco maior de ataque nuclear do que hoje.
Nas ruas de Anchorage, maior cidade do Alasca, pouco se fala da ameaça nortecoreana. A percepção geral é que o sistema de defesa antimísseis americano nunca deixaria que um míssil atingisse o Estado —e que Kim Jong-un não seria louco o bastante para declarar guerra a um país da magnitude dos EUA.
“Não passo muito tempo pensando em coisas negativas. E também não acho que um país tão pequeno se arriscaria desta forma. Eles estariam perdidos se nos atacassem”, diz o vendedor Frederick Burkie, 24, que há cinco meses se mudou do Oregon para o Alasca e não pretende mudar nada em sua rotina.
A descrença na real possibilidade de um ataque e a confiança na defesa americana impactam até na forma como o governo local se prepara para uma eventual catástrofe nuclear.
De acordo com o diretor de Segurança Doméstica e Gerenciamento de Emergências do governo do Alasca, Mike O’Hare, não há plano especí- fico para um ataque com bomba atômica.
“Temos plano para casos de catástrofe, para todos os perigos e as ameaças”, disse à Folha. “Seja por ação do homem ou desastres naturais, o plano é o mesmo: abrigos para a população, resposta médica, retirada e recuperação a longo prazo.”
Ele ressalta que a população do Alasca, que enfrentou o maior terremoto da história recente dos EUA, em 1964, também é “mais resiliente” que a de outros Estados. “Ela está acostumada a passar períodos sem energia, sem água, em temperaturas extremas.”
A comerciante Sheri Hess, 67, porém, diz sentir falta das medidas de precaução que via na época da Guerra Fria, quando a ameaça era soviética. “Saíamos correndo da escola para um abrigo nuclear quando soava o alarme de treinamento”, lembra ela.
“Hoje eu não sei como seria, para onde iríamos”, afirma Hess, que diz temer um ataque a longo prazo que possa atingir os filhos e os netos. Por agora, seu maior medo são os ataques de ursos, cada vez mais comuns na região.
Bunkers usados na Guerra Fria para armazenamento e lançamento de mísseis, e também como abrigo para militares, ainda podem ser vistos pela cidade. Um espaço com quatro deles se tornou um parque após sua desativação, em 1979.
Em um deles, agora funciona uma academia. O espaço também é usado como depósito para materiais esportivos. Em outro, sacos de areia ocupam o espaço antes reservado para material explosivo.
“Daqui sairia o míssil que impediria um ataque soviético”, afirma, apontando para o trilho enferrujado, o professor Ivan Hodes, 34, que serviu na Guerra do Iraque entre 2006 e 2007 e hoje faz parte do grupo de veteranos do Alasca. “Felizmente, ele nunca precisou ser lançado para interceptação. Se fosse, seria o fim do mundo.”
O ombudsman municipal de Anchorage, Darrel Hess, que tem a função de monitorar as agências locais, lembra, quando aos dez anos, era orientado a se esconder debaixo da mesa no Texas, em meio à crise dos mísseis de Cuba (1962). “Hoje talvez não haja mais abrigos nucleares por aqui porque eles sabem que não adiantaria: você sairia e estaria tudo destruído.”
É da mesma época que Karen Kizis se lembra do bunker que o pai construíra em casa, no Estado de Nova York, diante da ameaça de um ataque soviético a partir de Cuba. “Éramos crianças e meus pais não contavam que era um abrigo. Diziam que era um depósito para comida.”
A tenente-coronel reformada, que trabalhou como enfermeira quando era militar, hoje tem em casa uma caixa com alimentos que mantêm uma pessoa por até 30 dias.
Ela também já combinou com a amiga Elizabeth Metz, 76, que as duas se abrigarão no subsolo da casa de Metz se um desastre natural ou um ataque nuclear ocorrer.
“Já é da minha natureza se preparar”, diz Kizis, para quem a maioria dos moradores de Anchorage é tranquila demais em relação à ameaça norte-coreana. “Sei que eu sou uma exceção.”
DA ENVIADA A ANCHORAGE
Em 31 de maio, o Pentágono divulgou um vídeo mostrando o momento no qual um míssil balístico intercontinental (ICBM), lançado das ilhas Marshall, é destruído no ar por um outro míssil disparado da Califórnia.
Era a prova do sucesso do mais recente teste do único sistema que pode defender o território americano de um ataque norte-coreano com um ICBM.
Esse foi o primeiro teste do sistema chamado de defesa intermediária com base terrestre (GMD, na sigla em inglês) desde junho de 2014, quando também tinha sido bem-sucedido. Seu histórico, no entanto, não é dos melhores: dos 19 testes realizados desde 1999, nove (ou 47%) falharam.
O GMD consiste em um conjunto que opera com base em satélites, radares terrestres e no mar, além de mísseis interceptadores (GBI) —há 36, prontos para serem disparados das bases de Fort Greely, no Alasca, e Vandenberg, na Califórnia.
“O sistema GMD não só teve um desempenho ruim nos testes como não mostrou uma clara tendência de avanço. Sua fraqueza é aparente”, disse à Folha Joshua Pollack, especialista em não-proliferação nuclear do Instituto de Estudos Internacionais Middlebury, e exconsultor do governo americano para o tema.
Segundo Pollack, os testes começaram com o sistema inacabado, apesar de todos os alertas de um painel independente de especialistas de que o governo estava “correndo para o fracasso”. “O Departamento de Defesa já disse várias vezes que planeja disparar quatro ou cinco interceptadores a cada ogiva lançada de fato para aumentar a chance de sucesso. Isso sugere uma falta de confiança no sistema.”
As alternativas americanas ao GMD são a destruição dos mísseis norte-coreanos ainda em solo ou dos mecanismos de controle que permitiriam seu lançamento, ou esperar para a retaliação. (IF)