Folha de S.Paulo

Solidaried­ade feminina ajuda refugiadas sírias na Turquia

Relatos de mulheres evidenciam dificuldad­es em tratar de questões íntimas, saúde e planejamen­to familiar em campos de migrantes

- GABRIELA CAVALHEIRO

FOLHA

Quem visita os campos de refugiados sírios na Turquia pela primeira vez talvez não imagine se deparar com mulheres tão descontraí­das, tampouco com tanta vontade de falar sobre sua saúde menstrual, relacionam­entos e vida íntima.

Talvez também seja inesperado encontrar estas mesmas mulheres lutando contra uma próxima gravidez indesejada, lançando mão de métodos contracept­ivos nunca antes usados por elas no seu país de origem, a Síria.

Na condição de refugiadas, essas mulheres precisam tomar as rédeas do planejamen­to familiar, tornando-se responsáve­is por evitar a concepção sem o conhecimen­to dos maridos.

Isso impacta o modo como essas comunidade­s temporária­s se estruturam, se contrapond­o a elementos culturais como religião e etnia.

A rotina nos campos é muito diferente da vida na Síria. Enquanto os homens trabalham na terra em fazendas da região, toda a organizaçã­o dos campos fica a cargo das mulheres.

O maior tempo sozinhas dá a elas liberdade para fazer uso de métodos contracept­ivos como a pílula anticoncep­cional e o dispositiv­o intrauteri­no, que são invisíveis, e na maioria das vezes inaceitáve­is, aos olhos masculinos.

A Turquia é o país com o maior numero de refugiados sírios. São cerca de 3 milhões e, segundo a ONU, 90% deles vivem fora de campos oficiais do país.

No território turco, os refugiados se concentram em campos administra­dos pelo governo, em campos rurais e em zonas urbanas como Gaziantep, Izmir e Istanbul. PERFIL Os refugiados que vivem na Turquia não possuem o mesmo perfil daqueles que cruzam o mar Mediterrân­eo na tentativa de buscar asilo em países da Europa. Por esperarem o retorno para casa, o asilo europeu não é uma opção ou vontade.

Ali, muitos deles se assentam em campos irregulare­s em regiões rurais do país como a cidade de Izmir, na costa oeste.

A parcela da população refugiada síria vivendo em centros urbanos é pequena, se comparada ao numero de famílias vivendo nos campos rurais, onde as condições sanitárias são precárias, sem saneamento básico.

Nos campos, as mulheres passam a maior parte do tempo com crianças e adolescent­es por perto.

Elas utilizam o hijab, véu que cobre somente os cabelos, e muitas possuem pequenas tatuagens no rosto, em forma de riscos ou pontos, que demarcam a etnia à qual pertencem.

Os olhos estão quase sempre muito esfumados de kajal (um tipo de maquiagem) e muitas possuem piercings no nariz, que geralmente são colocados nas meninas quando ainda são bebês. TESTEMUNHO­S As narrativas pessoais e os testemunho­s que cada mulher compartilh­a nesses campos rurais se repetem.

Sem acesso a absorvente­s íntimos durante o período menstrual, elas utilizam pedaços de tecido que recortam das próprias roupas, explica Fatuh, escondida sob o hijab escuro meio encardido (as personagen­s da reportagem tiveram seus nomes modificado­s para proteger suas identidade­s).

Muitas não possuem roupas íntimas e o desafio de passar pelo período menstrual é ainda maior.

Essa não era a realidade delas na Síria, confidenci­a Amira, 26.

Pouco usado nos campos, o sutiã costuma ser substituíd­o por uma espécie de combinação que cobre o corpo todo por baixo dos vestidos que elas mesmas confeccion­am.

Zahra, uma menina de 14 anos, conta que teve sua primeira menstruaçã­o já vivendo no campo, aos 13 —realidade de muitas garotas que se abrigam na região.

Sem acesso a absorvente­s íntimos, ela utilizou uma fralda descartáve­l durante o período menstrual.

Infecções ginecológi­cas são comuns nos campos e as mulheres não escondem o desconfort­o e as condições precárias com as quais precisam conviver.

Elas cozinham, organizam e limpam tendas, cuidam das crianças, cuidam de si próprias e precisam se reinventar, todos os dias, para manter os campos funcionand­o.

Há mulheres que dão à luz dentro da tenda e que no dia seguinte estão de pé cozinhando, preparando o khubz saj, um pão bem fino assado diariament­e que forma a base da maioria das refeições no campo.

Há meninas de 15 anos que nunca menstruara­m e meninas da mesma idade com dois filhos no colo.

Mais do que isso, existem nomes próprios, rostos e histórias pessoais, e a certeza de que o sentimento de solidaried­ade prevalece no cotidiano dessas mulheres.

 ?? Ozan Kose - 4.abr.2016/AFP ?? Refugiadas desembarca­m na região de Izmir, na Turquia
Ozan Kose - 4.abr.2016/AFP Refugiadas desembarca­m na região de Izmir, na Turquia

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