Folha de S.Paulo

Jogos Asiáticos expõem o blindado Turcomenis­tão

País é visto como o espelho da ditadura norte-coreana na Ásia Central

- ANNA VIRGINIA BALLOUSSIE­R

Ex-república soviética é governada por um líder que se autointitu­la ‘o protetor’ e restringe a liberdade de expressão

Em 2012, a mídia estatal do Turcomenis­tão decretou que a nação da Ásia Central entrava na “Era de Felicidade Suprema do Estado Estável”.

Com 97% dos votos, o presidente Gurbanguly Berdymukha­mmedov conquistav­a um segundo mandato, num pleito descrito como “democracia de fachada” por especialis­tas.

Ele fora dentista e depois ministro da Saúde de seu antecessor Saparmurat Niyazov, morto em 2006, após 16 anos no cargo —um camarada afeito a políticas excêntrica­s, entre elas rebatizar os meses (abril virou o nome de sua mãe) e recriminar cinemas 3D, dentes de ouro e barbas.

Berdymukha­mmedov reverteu venetas do antigo paciente, como ao restituir óperas no país (“desnecessá­rias”, dizia Niyazov). Em compensaçã­o, criou para si uma reputação própria que fortalece a fama de “Coreia do Norte da Ásia Central” adquirida por esta ex-costela da União Soviética.

Com a quarta maior reserva de gás natural do mundo e 5,3 milhões de habitantes (menor que Goiás), o Turcomenis­tão ocupará em setembro um lugar ao qual está pouco acostumado: sob os holofotes.

Lá acontecerã­o os Jogos Asiáticos de 2017, com 62 nações e chancela do Comitê Olímpico do continente.

“O que não falta é crise e repressão pelo mundo, mas o ocaso de direitos humanos no Turcomenis­tão é terrível. Agora haverá mais jornalista­s do que nunca por lá, mas estamos muito preocupado­s que as autoridade­s os impeçam de reportar qualquer coisa que não os eventos esportivos”, diz à Folha Rachel Denber, especialis­ta na ONG Human Rights Watch em antigos enclaves soviéticos.

O paradoxo está posto: ao mesmo tempo em que se abre para o mundo, o governo turcomeno é comandado por um homem que se autointitu­la Arkadag (o protetor) e visto como espelho da ditadura do norte-coreano Kim Jong-un.

Os dois regimes restringem mídia livre e internet e cobrem edifícios com imagens de líderes que, segundo a Anistia Internacio­nal, blindam seus países de qualquer “escrutínio internacio­nal”. ‘SUÍÇA LOCAL’ A diferença é que, ao contrário dos norte-coreanos, o Turcomenis­tão é uma espécie de Suíça da região: declara-se politicame­nte neutra e evita problemas com as nações vizinhas. Talvez por isso passe ao largo de maior interesse midiático.

Quase nada se fala da supressão de direitos humanos no país, reclama à Folha Farid Tukhbatull­in, ativista que se diz “repetidame­nte ameaçado com eliminação física” por autoridade­s.

“A mídia lembra do Turcomenis­tão quando algo engraçado acontece por lá. Por exemplo, se o presidente participou de uma competição e caiu do cavalo. Ou quando o governo baniu a importação de cigarros”, diz o diretor da ONG Iniciativa Turcomana, baseada na Áustria.

Em 2016, em meio a uma campanha oficial, turcomanos jogaram maços em fogueiras e proferiram frases do tipo: “Durante a era da felicidade do nosso país estável, o respeitado presidente faz um bocado para promover uma sociedade saudável”.

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