MEMÓRIAS PÓSTUMAS
Fotografias de André Penteado reinventam o passado brasileiro para repensar o presente
DE SÃO PAULO
Quando seu pai se matou, André Penteado fez uma série de autorretratos vestindo suas roupas, sempre de olhos fechados. “Elas ainda tinham o perfume dele”, conta o artista. “Era a única coisa que podia fazer para tocar nele.”
Desde esse trabalho realizado há uma década, sua obra fotográfica, agora alvo de mostras na Pinacoteca e na galeria Zipper, em São Paulo, e no Museu Nacional de Belas Artes, no Rio, gira em torno da reconstrução de memórias, oscilando entre o tom documental, ou “pseudocientífico”, e a mais discreta ficção.
Não por acaso, os acontecimentos que dominam seu imaginário são os mais intangíveis —episódios históricos nunca flagrados pelas câmeras fotográficas e por isso passíveis de reinvenção ou de um reenquadramento ideológico.
Na tentativa de desconstruir a imagem de um Brasil indiferente à barbárie política, atacando um “país que protesta, mas apaga a memória do protesto”, Penteado, 46, fez um primeiro livro de uma série sobre revoltas focando a Cabanagem, levante popular no século 19 que acabou com 30 mil mortos no Pará.
Mas a carnificina não aparece nas imagens que construiu. Nelas, há arquivos embrulhados em papel pardo, um facão inerte, um tronco de árvore, tudo fotografado com flash estourado como se fosse a prova cabal de um crime.
“Tento negar certo barroquismo nas imagens, a emoção pode estar numa camada mais abaixo”, diz Penteado. “Eu me vejo como um arqueólogo que vai escavar as peças para ver se elas se encaixam. É quase documental ou forense essa coisa de organizar e construir a história.”
Sua negação das estratégias de sedução da fotografia, aliás, agora esbarra na pintura. Em sua série mais recente, o artista documenta aquilo que sobrou da Academia Imperial de Belas Artes, no Rio.
Os destroços da Missão Francesa, que há dois séculos importou pintores para ensinar como retratar “um país fundado no genocídio”, nas palavras de Penteado, viram registros de obras carcomidas em acervos quase abandonados, estátuas de mármore e até um crânio para ensinar anatomia a futuros artistas.
Numa das imagens da série, o antigo portal da Academia surge como um cenário isolado no meio do Jardim Botânico, para onde foi levado depois da demolição do prédio original. Sua visão da arquitetura engolida pelo matagal ali revela, sem sombra de dramatismo artificial, a fragilidade da memória numa terra chamada de país do futuro desde os primórdios.