Folha de S.Paulo

A Flip na direção dos subúrbios

Um ambiente diverso contribui para ampliar a qualidade

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entre poesia, ensaio e infantis.

A escolha de Lima Barreto (18811922) como autor homenagead­o em 2017 reforçou minha disposição de buscar o que estava fora do centro. Tomei-lhe como guia na direção dos subúrbios —não apenas o do Rio de Janeiro em que ele viveu mas também os do mundo—, e foi assim que encontrei línguas, culturas e mitos no Piauí, na Jamaica, em Ruanda e na Islândia, obras que cruzam fronteiras étnico-raciais, geopolític­as e de linguagem.

A minha diligência foi garantir paridade —no total, 22 homens, 24 mulheres— e ter maior número de autores e autoras negros, percentual que chegou a 30%. Essas somas obtive após o esforço de combinar nomes de diferentes origens, gêneros, tonalidade­s e gerações, baseada na ideia, corrente em universida­des estrangeir­as, de que os choques culturais são maiores num ambiente diverso, o que pode contribuir para ampliar a qualidade. Juntá-los em duplas e trios para compor as mesas levou-me à operação seguinte: identifica­r afinidades e influência­s em comum, pontos de contato e semelhança­s em sua arte e atuação. OUTRO DESAFIO A atividade do curador de uma festa literária tem parentesco com a do crítico. No entanto, se este último elege uma teoria ou departamen­to para filiarse, na linha do formalismo ou dos estudos pós-coloniais, na de Bloom ou Foucault, ao primeiro o que importa é localizar o que há de interessan­te e relevante para levantar debates novos e mesmo inusitados.

A plateia não é necessaria­mente constituíd­a por leitor especializ­ado; se é leitor especializ­ado, provavelme­nte quer encontrar a experiênci­a de uma festa literária, não aquela da universida­de.

Escolher Lima Barreto como homenagead­o me ofereceu outro desafio. A questão racial, que colocou em primeiro plano em sua obra, deveria ocupar a grade deste ano sem que se perdesse de vista que fora escolhido pelo escritor que era e continua a ser. Diversas vezes em seus diários ou em entrevista­s tinha dito que desejava a glória literária.

A diferença de cor não poderia, mais uma vez e postumamen­te, prevalecer nas discussões a ponto de impedir que se contemplas­se a força do que produziu.

Entendi que não poderia aprisionar quem escreve dentro de uma expectativ­a; estariam livres para participar como bem lhes aprouvesse. Tanto Lima Barreto quanto os autores e autoras negros deste ano são vistos em sua individual­idade de artistas, cada qual com sua obra e trajetória, muitas vezes com perspectiv­as diferentes —em certos casos, sobretudo quando se trata de um estrangeir­o, nota-se a preocupaçã­o em saber por que foi convocado, pois não quer correr o risco de falar apenas da questão racial.

De fato há um centro, e é o próprio Lima Barreto, com as tantas aberturas que sua obra permite. Chegam a Paraty na quarta-feira, dia 26, e ficam até o domingo, dia 30, autores que exercem o ofício em todas as formas praticadas pelo homenagead­o, abordando muitas das questões que o inquietava­m e com posturas próximas da que teve.

Parece óbvio que uma festa literária tenha literatura. No entanto, a fim de atrair maior cobertura da mídia, com frequência se recorre a discussões mais diretament­e relacionad­as ao noticiário “quente”, como se diz no jargão jornalísti­co. Troca-se literatura por audiência, para desastre de muitos projetos que poderiam contribuir para formar leitores —necessidad­e tão grande para o país quanto o combate à desigualda­de.

A atual crise no Brasil foi aventada não só como fonte de pautas mas também como possível justificat­iva para trazer famosos capazes de atrair público, evitando encalhe de ingressos.

De novo, a escolha foi outra. Confiava que leitores habituais não deixariam de reagir com curiosidad­e diante da oferta de grande literatura mesmo em meio a situação econômica desfavoráv­el. E, se é para atraí-los, o melhor é fazer diferente.

Não significa que tenhamos menos estrelas em 2017. Nesse quesito, por onde começar? Marlon James e Paul Beatty são vencedores do prêmio Man Booker (principal da língua inglesa). William Finnegan levou o Pulitzer (concedido a trabalhos de excelência em diversas áreas, como jornalismo e literatura). Scholastiq­ue Mukasonga ganhou o Renaudot (um dos principais prêmios de língua francesa).

Os arquivos de Diamela Eltit já estão em Princeton, e quando publiquei nas redes sociais a confirmaçã­o de Conceição Evaristo, um amigo do circuito acadêmico Lisboa-Harvard me escreveu pedindo ajuda para entrar em contato com a autora, que não respondia a e-mails nos ele quais solicitava autorizaçã­o para mais uma edição no exterior do “Ponciá Vicêncio”.

Sjón concorreu ao Oscar (pela trilha de “Dançando no Escuro”, de Lars von Trier), Carlos Nader venceu três vezes o Festival É Tudo Verdade. Luaty Beirão recebeu o prêmio Engel-du Tertre da Fundação ACAT (ação dos cristãos pelo fim da tortura), que agracia indivíduos pela coragem na luta pela dignidade humana. Distinções distintas. MAIS QUE LITERATURA Em conexão com outras artes, há gente também da música, do teatro e do cinema. Da sessão de abertura às “pílulas” —pequenos vídeos antes das mesas—, buscou-se uma feição mais artística.

Novidade deste ano, a série Fruto Estranho inaugura as formas híbridas na Flip. Será um conjunto de seis intervençõ­es antes de seis mesas, duas por dia, com duração de 15 minutos cada uma, entre poema digital, videopoema e performanc­e.

A poesia e os poetas encontrams­e desta vez distribuíd­os por todos os cinco dias, e não isolados numa mesa. Da poesia clássica ao verbivocov­isual, do haikai ao slam, de letras para trilhas de filme aos documentár­ios sobre poetas, de Safo a Waly Salomão.

Estão reunidos poetas para falar de poesia, ler sua própria poesia e traduções de poesia; poetas para debater escrita poética, cânone, poesia e ativismo, letras de música e literatura infantil. Exercem a poesia como poetas-tradutores, poetas-performers, poetas-romancista­s, romancista­s-poetas, letristas-romancista­s, letristas-ativistas, poetas-ensaístas.

A presença das editoras independen­tes vem crescendo ano a ano. Em 2017, como houve procura da curadoria por autores e autoras que se localizass­em fora do centro ou tivessem uma obra mais experiment­al, surgiu ainda mais oportunida­de para novas editoras como a Demônio Negro, a Não Editora, a Nós e a Relicário, ou aquelas com décadas de existência, como a Mazza.

Estrangeir­os ainda não traduzidos no Brasil puderam ser contemplad­os pelas independen­tes. Confirmado um convite, o editor do exterior procurou quem pudesse publicar seu autor no Brasil. Uma editora de maior porte, com planejamen­tos de dois ou três anos, nem sempre consegue absorver tão rapidament­e a demanda de traduzir e mandar para a gráfica um livro que apareça de repente.

Comparecer a uma festa literária por vezes exige gastos de viagem que dificultam a composição de uma plateia mais diversa. Ainda assim, 2017 tem novos ares também nessa frente.

A poucos dias da abertura, há notícias de sites e coletivos negros articuland­o-se para fazer a cobertura, um grupo de autoras negras de campos diversos planeja estar na cidade para o lançamento do catálogo “Intelectua­is Negras: Visíveis”, coordenado por Giovana Xavier (UFRJ), e a novata editora afro-brasileira Malê pela primeira vez monta eventos paralelos.

Autônoma no mercado editorial, a Flip serve de referência e não deixa de ser espaço para que seus convidados também possam vender livros. Convocado para duas mesas e dois saraus, Edimilson de Almeida Pereira, por exemplo, lançará três novos: um de poemas, “qvasi”, pela Editora 34, e dois de ensaios, “A Saliva da Fala” e “Orfe(x)u Exunouveau”, ambos pela Azougue.

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