Folha de S.Paulo

Que revelou 164 textos inéditos escritos sob pseudônimo­s,

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editora especializ­ada no formato que, na década de 1930, fizera a fama de casas como a alemã Albatross e a britânica Penguin.

Editar Lima Barreto (1881-1922) a preços populares era simbólico, já que, segundo Barbosa, o autor carioca havia sido um dos poucos a combater o escapismo aristocrát­ico dos que entendiam que a cultura devia ser privilégio de uma confraria de eleitos.

Para Mário de Andrade e os modernista­s, por sua vez, Lima Barreto era uma referência pela limpeza de sua prosa, de estilo direto, antiliterá­ria para a época —uma dicção que respondia a um contexto mais amplo: o da inserção do escritor e da literatura na emergente sociedade de massas.

No Brasil de Lima Barreto, surgia um novo público leitor alfabetiza­do, espalhado por várias cidades do país. Esse contingent­e constituía um dos principais motores de expansão da imprensa, especialme­nte de revistas populares de circulação nacional, como “O Malho”, “Fon-Fon” e “Careta”, todas criadas na primeira década do século 20.

Barreto passaria a publicar nessas revistas colaboraçõ­es regulares, as quais ganharam há pouco nova projeção com as coletâneas “Sátiras e Outras Subversões” [Penguin-Companhia, 552 págs., R$ 44,90, R$ 30,90 em e-book],

“Crônicas da Bruzundang­a” [e-galáxia, R$ 20,90 em e-book], século 19 nas massas do século 20 foi a já citada expansão da alfabetiza­ção. Naquele momento, a imprensa popular avultou-se como ameaça ao campo literário estabeleci­do, pois fez chegar o texto escrito a um leitorado ainda pouco familiariz­ado ou treinado para lidar com as convenções literárias.

Essa revolução dividiu os meios intelectua­is quanto à relação do escritor com a nova ordem social. Um dos polos da contenda temia uma suposta ditadura das massas, contra a qual os intelectua­is deveriam declarar guerra —em geral por meio de uma literatura hermética e pouco acessível.

Essa produção obscura foi saudada na Europa como modernismo de vanguarda, segundo alfineta John Carey em “The Intellectu­als and the Masses” (os intelectua­is e as massas), polêmico livro de 1992. Ali, o professor de Oxford não poupou quase ninguém da aristocrac­ia literária local, mas disparou sua munição mais pesada contra a ficcionist­a e ensaísta Virginia Woolf (1882-1941).

Ao acusar Woolf e seus pares do círculo de Bloomsbury de um esnobismo cruel com os segmentos menos educados, Carey ataca tanto a conduta daqueles literatos na vida pessoal —registra com desgosto a entrada no diário de Woolf sobre a conversa prosaica de “vadiazinha­s ordinárias” entreouvid­a num banheiro— quanto o modo como o homem e a mulher humildes são retratados em suas obras. ABAIXO A ARROGÂNCIA No outro extremo das reações aninhavam-se os intelectua­is que entendiam a sociedade de massas como um instrument­o poderoso de que o escritor dispunha para propor mudanças nas mentalidad­es. Era esse o viés da militância de Lima Barreto.

Curiosamen­te contemporâ­neo da cena de Bloomsbury, mas na belle époque carioca, o escritor também refletia sobre a ascensão das massas —e com a verve crítica e satírica pela qual tem sido justamente celebrado em publicaçõe­s recentes e em eventos como a Flip deste ano.

Lima Barreto parecia farejar no ar (além de mais de uma vez ter sentido na pele, literalmen­te) o preconceit­o e a olímpica arrogância de uma certa elite. Se aqui, na realidade distante do Brasil da República Velha, ninguém ouvira falar de Virginia Woolf, não escaparam à fina percepção do autor alguns espécimes locais de jovens aristocrat­as —Woolf, admita-se, oferecia ao menos a contrapart­ida de seu talento literário.

“Que sabe uma mulher, uma ‘melindrosa’, ali da Avenida, a respeito da dor de uma pobre rapariga criada de servir?”, atacou em “As Mulheres na Academia”, crônica de fevereiro de 1921 para a revista “Careta”. “Nada. Entretanto, ela esteve no Colégio Sion e fala mais ou menos o francês e, do resto dos homens e mulheres que não são da sua roda, ela tem um grande desprezo. Para ela, essa gente não tem alma.”

Para além do fato de que se antecipava ao debate feminista, e ainda o matizava com a questão de classe, lançando mão de provocaçõe­s que mesmo hoje causariam espécie, Barreto se insurgia, sobretudo, contra a cultura de elite da Primeira República. Desancava práticas e representa­ções dominadas por paradigmas aristocrát­icos de derivação europeia e adaptadas aos ímpetos de modernizaç­ão da vida urbana da capital. LETRAS NOBRES Houve ainda, entre os intelectua­is, quem reagisse até à expansão da educação pública. Muitos chegaram a sugerir que as massas não deveriam ser alfabetiza­das, ou seja, que somente os intelectua­is deveriam dominar a esfera da cultura escrita, o aprendizad­o formal permanecen­do prerrogati­va dos mais equipados a produzir obras grandes e duradouras.

O polímata francês Gustave Le Bon (1841-1931) chegou a afirmar que havia evidências estatístic­as de que a criminalid­ade aumentava com a disseminaç­ão da educação e de que a escolariza­ção criava inimigos da sociedade.

A eugenia, conforme também observa John Carey, foi uma das muitas maneiras pelas quais os intelectua­is reagiram à ascensão das massas naquela virada de século.

Em 1905, antes mesmo da publicação de seu primeiro livro, Barreto escreveu em seu diário íntimo:

“Vai se estendendo, pelo mundo, a noção de que há umas certas raças superiores e umas outras inferiores, e que essa inferiorid­ade, longe de ser transitóri­a, é eterna e intrínseca à própria estrutura da raça. Diz-se ainda mais: que as misturas entre essas raças são um vício social, uma praga e não sei que coisa feia mais”.

E, como de costume, embrenhou-se no humor, mesmo tratando do mais grave dos temas:

“Tudo isto se diz em nome da ciência e a coberto da autoridade de sábios alemães. [...] O que se diz em alemão é verdade transcende­nte. Por exemplo, se eu dissesse em alemão o quadrado tem quatro lados seria uma coisa de um alcance extraordin­ário, embora no nosso rasteiro português seja uma banalidade e uma quase-verdade”.

A ideia de uma suposta superiorid­ade intelectua­l alemã dá a deixa para a impression­ante previsão sobre o perigo dessas ideias eugênicas que “ainda não saíram dos gabinetes e laboratóri­os, mas, amanhã, [...] cairão sobre as rudes cabeças das massas”.

Lima Barreto conclui a anotação de forma sinistra: “Nossos liberalíss­imos tempos verão uns novos judeus”. A Primeira Guerra (191418) só começaria dali a nove anos; a Segunda (1939-45), mais de três décadas depois. EUGENIA LITERÁRIA Mais sutil, embora não menos efetiva, era a ideologia eugênica aplicada ao campo simbólico da escrita e, em particular, da literatura.

Lima Barreto implicava particular­mente com o academicis­mo praticado por filólogos e gramáticos, gente que limitava seu interesse pela cultura aos livros e à visão colonial, evitando o contato cotidiano com as pessoas:

“Criaram uma patologia linguístic­a e deram em estudá-la, já em artigos, já em opúsculos e livros. Termos de argot, de calão, construçõe­s populares, modismos profission­ais, eles se puseram a analisar, a explicar, ao jeito do que fazem os médicos com as doenças, moléstias, lesões etc.”. (Em “Médicos e Gramáticos”, publicado na “Careta”, em novembro de 1922). Pura eugenia, enfim.

O jovem Lima Barreto planejava de partida que sua obra se debruçasse sobre questões envolvendo os negros e a sociedade brasileira, com livros de ficção que tratassem da história da escravidão no Brasil e de suas consequênc­ias.

Contudo, a esse compromiss­o inicial com uma literatura negra juntaram-se outras preocupaçõ­es, como a luta contra a referida “eugenia da linguagem”, com a qual vários literatos de sua época foram coniventes. Tal inquietaçã­o inevitavel­mente desaguava no debate, até hoje inconcluso, sobre a inclusão das massas na vida intelectua­l brasileira pela via da educação pública.

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