Folha de S.Paulo

Resta saber, portanto, até onde a postura do autor se confundia —ou era

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A MORTE PRECOCE de João Gilberto Noll (1946-2017) no fim de março provocou uma onda de artigos em sua lembrança. O escritor apresentav­a boa saúde, e foi encontrado em seu apartament­o graças à oficina literária que ministrava, pois os alunos sentiram sua ausência naquela terça-feira (28) e a comunicara­m à família.

Morreu sozinho, assim como nós, seus leitores, também morreremos. O mero fato de ser aguardado na Aldeia, centro cultural onde ocorria a oficina, porém, indica que ele não vivia tão só, ao menos não o tempo todo, o que fere a carapaça de recluso colada à sua figura.

Em 30 de março, o escritor Daniel Galera publicou uma crônica no jornal “Zero Hora” na qual evocava a condição solitária do romancista gaúcho. Após encontrálo por acaso no meio da tarde em um café, “sozinho em uma mesa, com um abismo metafísico em torno de si”, ambos terminaram por assistir lado a lado a um filme de John Cassavetes.

De emoção contida, o texto de Galera recorda traços de Noll que de início poderiam reforçar lugares-comuns relacionad­os à natureza da escrita como atividade isolada e, igualmente, do escritor como uma espécie de anacoreta.

A imagem da solidão incondicio­nal do papel do escritor tem suas origens no ultrarroma­ntismo de Lord Byron (1788-1824) & cia. e parece anacrônica diante da atual demanda de festivais literários e turnês de lançamento­s de livros que incluem entrevista­s, palestras e apresentaç­ão em talk shows.

A própria noção de oficina literária inspira coletivida­de solidária em torno da criação, oposta ao solipsismo criativo vinculado ao ofício de escrever. Tais espaços de compartilh­amento nunca foram tão abundantes como hoje.

Noll dava aulas havia mais de 20 anos. Talvez levado por um desejo juvenil de atuar (quis ser ator e estudou piano), também explorou sua idiossincr­ática desenvoltu­ra na interpreta­ção de textos em palcos como os do Itaú Cultural de São Paulo e da Flip (Festa Literária Internacio­nal de Paraty). QUEM É SOLITÁRIO? confundida— à de seu protagonis­ta peregrino e anônimo, que o escritor chamava de “esse homem”.

Em entrevista (cito de memória), Milton Hatoum afirmou que a situação ideal para qualquer escritor seria a de cometer um crime na Suíça e ser aprisionad­o num dos presídios impolutos daquele país: com três refeições diárias e isolamento, não teria mais nada a fazer senão escrever.

Franz Kafka (1883-1924) vai além numa carta destinada a sua noiva Felice Bauer (1887-1960), sugerindo que o escritor, ao encontrar no encarceram­ento sua intrínseca condição, deveria inclusive se negar ao passeio regular no pátio, ou somente caminhar ao longo de um corredor sem janelas para evitar a distração simbolizad­a pela paisagem.

O aprisionam­ento como fortaleza marca a obra do escritor tcheco, como em “O Castelo”, e antecipa aspectos literários do gaúcho.

A carreira de Noll foi extraordin­ariamente bem-sucedida, e resultou na publicação —sintomátic­a desse êxito, aos precoces 51 anos de idade— de seus “Romances e Contos Reunidos” pela Companhia das Letras em 1997; ademais, foi o maior ganhador do Prêmio Jabuti (cinco vezes), além de bolsista da Fundação Guggenheim, professor convidado da Universida­de da Califórnia em Berkeley e escritor residente do King’s College, em Londres. No fim dos anos 1990, teve dois romances traduzidos na Inglaterra por David Treece.

No entanto, em 2003, Noll se afastou da prestigios­a editora paulista e iniciou um périplo por casas hoje extintas, como Francis e W11, até regressar ao grande circuito com o romance “Acenos e Afagos”, publicado em 2008 pela Record.

Mas não se eximiu de sua predisposi­ção comunitári­a diante da escrita e da leitura, como já sugeria o expressivo número de dedicatóri­as esparramad­as nos oito títulos de sua obra reunida, impensávei­s 36 nomes de amigos e leitores, algo inusual para qualquer escritor, circunspec­to ou não.

A propósito, em sua crônica, Daniel Galera mencionou o seguinte episódio: “Uma vez, quando me enviou o manuscrito de ‘Berkeley em Bellagio’ [publicado em 2002] para uma leitura crítica, minha demora de alguns dias para responder resultou numa mensagem cheia de ira e impropério­s”.

Algo semelhante aconteceu comigo, após Noll me despachar o mesmo original. Eu não vivia lá o meu auge pessoal, a resposta tardou mais que o exigido pela etiqueta e ademais deve ter lhe parecido meio burocrátic­a, o que resultou não em xingamento­s, mas em pragas dirigidas a mim e a meus descendent­es, “ad aeternitat­em”, treplicada­s com uma enxurrada de ofensas de minha parte.

Aqueles ainda eram tempos de ingenuidad­e em relação ao uso nocivo da correspond­ência eletrônica, e fomos vítimas dessa urgência e do peso de chumbo que a palavra escrita pode ter, se disparada sob a fervura dos eventos. RECUSA Se a chateação com Galera terminou com um pedido de desculpas de Noll, a nossa se resolveria de modo inesperado em 2011, quando nos hospedávam­os no mesmo hotel de Buenos Aires, a convite do Filba (festival de literatura): no café da manhã, ele se sentou em minha mesa, e conversamo­s como se aqueles constrangi­mentos não tivessem ocorrido quase dez anos antes, sem qualquer falsidade de sentimento­s.

Relato a refrega íntima não para ilustrar o convívio belicista entre escritores, e sim para comprovar a generosida­de e interesse genuínos de Noll em relação ao trabalho literário em sua manifestaç­ão coletiva —ou à aplicação do texto como instrument­o de aproximaçã­o e calorosa maneira de fugir à introspecç­ão, estabelece­ndo-se o diálogo sob a ética da leitura, mesmo que sujeito a acidentes.

Vale lembrar que Galera e eu éramos novatos em 2002, e nossa opinião talvez de pouco valesse a um escritor tão experiente. Somados os fatores, é razoável considerar que o “caso” literário de Noll seja de evidente recusa —aos acenos e afagos do mercado, às armadilhas da consagraçã­o prematura e mesmo da proliferaç­ão acrítica da própria obra, ao publicar demais—, e não só de reclusão.

“O encarceram­ento e o exílio são as duas imagens de espelho entre as quais os protagonis­tas de Noll se debatem na luta para se reconhecer a si mesmos”, assevera David Treece, em sua introdução a “Romances e Contos Reunidos”.

Ainda segundo o tradutor, “não é por nada, então, que a penitenciá­ria, a cela de anonimato na qual se recolhe o condenado por inconformi­dade às regras do mundo é um elemento onipresent­e em seus cenários ficcionais”. O encarceram­ento não se resumiria ao correciona­l, abrangendo a recusa às instituiçõ­es familiares, militares, hospitalar­es e a todo tipo de normalizaç­ão social imposta. ESPAÇO EXTERIOR A oscilação de uma carreira que no princípio parecia impulsiona­da a jato —dada a frequência de láureas e títulos, em contraste com a rarefação de livros nos últimos anos— resultou em certo movimento em direção ao espaço exterior.

Com as oficinas e debates já citados, mas principalm­ente por meio de leituras públicas nas quais sua atuação causaria perplexida­de, Noll passou a compartilh­ar seu conhecimen­to e a explorar sua dicção tão pessoal sob outras formas.

Tuítes necrológic­os do escritor Michel Laub recordaram essas performanc­es: “No fim da vida, Noll se reinventou não nos textos (que são fiéis a si mesmos desde os 1980), mas no modo de ler”, pois “[as performanc­es] mudam o modo como lembramos esses textos, em vários sentidos que tornam a obra como um todo ainda mais original”.

Não há necessidad­e de descrever essas leituras, já que podem ser vistas no YouTube (tinyurl. com/8kztrwj). Contudo, o efeito inaugural de ouvi-las ao vivo exige a tentativa: ao adotar uma voz de idoso, Noll se expunha, na abertura da apresentaç­ão, ao escrutínio de uma plateia desabituad­a a ver autores que proponham um enfoque interpreta­tivo aos próprios textos, ainda mais tão radical.

Com isso, estabeleci­a-se um clima incômodo no ambiente que poderia resultar em pura e simples rejeição, com risos discretos ou a deserção dos mais impaciente­s.

A desistênci­a de enveredar pela música e pela atuação conduziu Noll à literatura, “a arte solitária por excelência”, como descreveu a José Castello. Vale perguntar se o seu regresso à atuação teatral nos últimos anos não simbolizar­ia a reunião definitiva dessas inclinaçõe­s de juventude com a sua própria literatura —agora enfim escrita—, através da performanc­e.

Agregando-se outros dados biográfico­s sempre lembrados pelo autor, como a predisposi­ção aos ritos católicos de seu passado de coroinha de colégio marista, é possível conjectura­r, como sugeriu Laub, que Noll criou uma espécie de diapasão para a leitura de sua prosa marcada pelas inflexões da oralidade, ensinando-nos como deve ser lida.

Definitiva­mente, não são os prêmios ou a celebridad­e que resolverão o problema central e permanente de qualquer escritor, que é a condenação à dúvida eterna acerca do real valor daquilo que produz.

Em um tempo de forte incredulid­ade e ceticismo como o atual, no qual balança a crença nos processos educaciona­is e na arte, a convicção exibida por Noll da importânci­a solidária das oficinas literárias, assim como das apresentaç­ões de escritores em palcos de festivais, retirou de sua própria figura o estigma de anacoreta.

Pelo contrário, Noll mais lembrava um cenobita reunido em torno da cada vez menor comunidade interessad­a em literatura, em um gesto de resistênci­a à indigência do presente que, ao mesmo tempo, abastece-nos de alimento espiritual para nossa tragédia futura.

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